terça-feira, 15 de agosto de 2017

As cinzas do cinema novo ou os filhos da telenovela



Atilado acerto de Erik Rocha ter deixado fora de seu documentário do Cinema Novo a senhora, quase ex-ministra, Ivana Bentes, que assim o livrou do parricídio cinematográfico e do antimarxismo vulgar.

O seu filme não deveria ter sido exibido em capítulos na TV. A exibição gota a gota potencializa a metodologia clip, descosida, ilustrativa, de que resulta a fraca metalinguagem desprovida de interpretação. Nem vencidos nem vencedores. Nem tupy nem antitupy.

Somos inocentes com ou sem culpa, inclusive a culpa feliz. Documentário afável para agradar a todos durante a guerra civil em curso.

No livro A Revolução do Cinema Novo (1980) entende-se por revolução a mudança do domínio de uma classe social por outra. O autor imprime unidade estilística e conceitual às películas de seus amigos. Mentalizadores e protagonistas do cinema da nacionalidade, Walter da Silveira e Roberto Pires colocaram a questão proletária e lumpemproletária. O banditismo do sertão e da cidade não é agente ou sujeito da revolução. A contradição é entre cinema nacional e subdesenvolvimento.

Glauber Rocha anteviu a cooptação do Cinema Novo feita pela TV Globo como aparato de dominação externa e apêndice do capital estrangeiro. Revolução traída, desfigurada, tal qual a revolução de 1917 na Rússia. A metáfora marxista exagera, mas não mente. O padrinho da contra-revolução televisiva foi Roberto Campos. Os cineastas brasileiros eram compulsivos edipianos atrelados à lactose do Estado.

Com o golpe roliudiano de 1964 a telenovela é sucesso para gáudio de Carlos Lacerda, o censor do cinema em sua identificação ambivalente de amor e ódio com o personagem Antonio das Mortes, o sicário matador de cangaceiro. Em A Idade da Terra (1980) metamorfoseia em genocida das multinacionais representado por Mauricio do Valle com cabelo aloirado pente quente e nevrosado capitalista anunciando Donald Trump, o império no fim da decadência.

Gunder Frank morou uns tempos no bairro de Botafogo. Escreveu em agosto de 1964 que Carlos Lacerda representava os interesses do capital comercial e imobiliário.

A direita carioca, seja qual seja, é de índole lacerdista moldada pelo desejo de telenovela. A pequena burguesia enlouquecida é fascinadapor Antonio das Mortes (hoje pastor evangélico) que atira no povo com bacamarte comprado no PMDB de Israel.

A montagem foi criada por Carlos Marx. Não por acaso Eisenstein quis filmar O Capital. A dialética é tecida do presente para o passado. Em Revisão Critica do Cinema (1963) a  desigualitária constelação regional do País decorre da satelitização imperialista.

A burguesia bandeirante é soberba e vende-Pátria.

Glauber Rocha peleou com o Cebrap de FHC. Deus e o Diabo filmou a caatinga nordestina criada pelos bandeirantes predadores de índios.

No tempo barroco a atriz Danuza Leão aparece antes e depois da first lady Marcela Temer. Havia outros cineastas com talento. Releva citar Walter Lima Junior com seu magnífico filme sobre Luís da Câmara Cascudo, refilmado por Ricardo Miranda, o saudoso Orson Welles de Niterói, no dizer carinhoso do fotógrafo Mario Carneiro.

Glauber Rocha aprendeu a filmar com Roberto Pires, o Lumière de Salvador. Gênio, como dele disse João Guimarães Rosa. Gênio, mas não infalível. Errou quanto ao caráter revolucionário dos romances de Jorge Amado, errou ao atribuir o papel de Cristo do Terceiro Mundo ao poeta ateu e marxista Pier Paolo Pasolini, errou ao subestimar a malícia anticomunista de Arnaldo Jabor: follow the money!

O cinema entreguista pós-Glauber Rocha separou capitalismo de imperialismo.

"O cinemão bate palmas para o imperialismo democrático. A telenovela é o perdão ao golpe de 64. A burguesia golpista da Fiesp agora é democrata. O pop Rockefeller era a Tropicália, para quem a ditadura começou com o AI-5, e não com a deposição de João Goulart em 1964". O cinemão bate palmas para o imperialismo democrático. A telenovela é o perdão ao golpe de 64. A burguesia golpista da Fiesp agora é democrata. O pop Rockefeller era a Tropicália, para quem a ditadura começou com o AI-5, e não com a deposição de João Goulart em 1964.

Todo mundo surfou na superestrutura autoritária. Antimilitarista, mas não antimilitar, quase linchado pela sociedade civil de Zuenir Ventura. Glauber Rocha reivindicou a epopéia Simon Bolívar no Palácio da Alvorada.

A ditadura continua com a democracia das multinacionais.

Os historiadores bundões ainda não assimilaram a catequese Guarany do Kinema, segundo a qual a raiz do golpe de 64 está no Lopez del Paraguay com capitalismo de Estado que incomodou a sádica City.

O cinemão submetido à telenovela e à música popular. Aí está a muleta do cineasta a fim de alcançar sucesso de público, segundo a “euforia entediante” da música popular, como dizia Theodor Adorno. Para essa ruidosa autoajuda gospel, Glauber Rocha se equivocou porque não seduziu o mercado. Foi iludido pela conversa de revolução socialista no Terceiro Mundo, como reclama Danuza Leão em A Idade da Terra.

O caminho trilhado pelo cinemão foi dado por Roberto Campos e Carlos Lacerda. O professor em Dragão da Maldade converte-se em pastor de Igreja ou âncora da TV Globo.

Paulo Martins de Terra em Transe, seduzido por Milton Friedman e atualizado por George Soros, é eleito senador pelo PSDB de São Paulo, e que já está em Geraldo del Rey desvitalizado em A Idade da Terra. Aí Antônio das Mortes retorna como personagem protagônico.

O lance de Brahms não é com Cristo, e sim com os contratos de privatização. Não mais se comove com a injustiça de que padecem os oprimidos em Dragão da Maldade, não carrega o vestígio de culpa ou arrependimento por ter matado os cangaceiros Lampião e Coirama. Retoma a pauta com o coronel e a Igreja em Deus e o Diabo na Terra do Sol, não tem medo do marxismo nem do proletariado. Cristo, de quem tem um difuso pavor, não é o seu inimigo, já que Cristo é uma palavra anfibológica que serve à acumulação de capital do bispo Edir Macedo.

O desdobramento de Antônio das Mortes em Brahms é pró-imperialismo. Os interesses do capital monopolista estrangeiro são mais fortes do que a religião. O povo é bobo se contar com a expiação.

Afinal, o que Brahms quer do Brasil? Não quando está a fim das buças no carnaval e nas Olimpíadas do Maracanã, mas quando recebido pelo Bank of Boston no Palácio da Alvorada.



Publicado na Caros Amigos em 07 de julho de 2017.