sexta-feira, 29 de novembro de 2019

O caudilho Leonel Brizola está morto e eu não estou na comédia de auditório




Quando Cláudio Abramo em 1977 me convidou para escrever editoriais na Folha de São Paulo, o jornalismo progressista já era.

Tímido, em silêncio, o jovem Octávio Frias Filho, que parecia um beneditino seminarista, espreitava parado na porta. Aí eu perguntei para Cláudio: – quanto eu vou ganhar? Ele respondeu: – dinheiro não é comigo. Fale com o Boris Casoy.

– Quem é esse cara?
Cláudio: – pergunte por aí que lhe informam.

A equipe de editorialistas tinha por objetivo aproximar a imprensa da universidade e, ao mesmo tempo, cooptar os intelectuais da imprensa alternativa.

Em 1978, Rio de Janeiro, apartamento emprestado na Rua Vieira Souto, Glauber Rocha queria saber de mim quem havia sido a pessoa que o convidara para escrever na Folha de São Paulo.

– Cláudio? Samuel Wainer?
– Talvez Octávio Frias Filho.

Alguns meses depois Glauber Rocha interrompeu sua colaboração na Folha de São Paulo. Ele me perguntou quanto o jornal pagava por artigo.

– Que vergonha!

Ainda que alijado da direção, Cláudio Abramo era o epicentro do jornal. Um montão de gente ia vê-lo. Do senador Severo Gomes a Glauber Rocha. Este, quando o conheci em 1978, ao lado de Cláudio Abramo e Samuel Wainer, pegou no meu braço e cochichou: – Daqui a dez anos você estará no poder.

Cláudio Abramo ouviu a gozação de Glauber: – Que nada! O guri daqui a dez anos estará na direita.

Perguntei para Samuel Wainer o que ele achava do cineasta, esperando certamente ouvir altos elogios. Samuel foi seco, lacônico: – um gênio, mas maluco.

Em 1988, dez anos depois, leio as memórias de Samuel. Em 1967, no exílio em Paris, foi enrolado por um cineasta grego picareta; sua ex-mulher, Danuza Leão, musa do Country Club, trabalhou no filme de Glauber, fazendo o papel de amante do poeta e jornalista Paulo Martins, amante grã-fina que lhe foi cedida por Porfírio Dias, o alterego de Carlos Lacerda, o ditador coroado pelo latifúndio e as multinacionais de Eldorado.

O filme Terra em Transe é simultaneamente a história do janguismo e uma metáfora barroca do lacerdismo.

Glauber Rocha dizia que Carlos Lacerda, o censor de Deus e o Diabo na Terra do Sol, inspirou a dramaturgia de Terra em Transe.

Em 1980 Samuel achou que eu teria voltado esnobe de uma bolsa de estudo no exterior, escrevendo coisas ininteligíveis: –jornal não é brincadeira de intelectual!

Samuel Wainer valorizou a retórica do inimigo Carlos Lacerda que, segundo ele, nunca foi jornalista porque desconhecia o funcionamento tipográfico do jornal, e também porque não conseguia transar legal a redação. Carlos Lacerda rebateu a crítica dizendo que Samuel Wainer gostava mais de jornal do que do país.

A imprensa de que falava Samuel Wainer mudou muito pouco, a mesma reprodução familiar do dono, assim como o mesmo cerco contra Leonel Brizola.

Samuel Wainer: “a imprensa pode não ajudar a ganhar, mas ajuda a perder”. Não obstante a atitude hostil da imprensa, Getúlio Vargas ganhou as eleições de 1950 em São Paulo.

O antigo bloco da UDN, representado pelo trinômio Xatô-Lacerda-Roberto Marinho, reapareceu na oposição a Leonel Brizola e Darcy Ribeiro. Se estivesse vivo, envolvido com a grande imprensa carioca e paulista, é bem provável que Samuel Wainer, a julgar pela sua visão sobre o golpe de 64, não votaria em Leonel Brizola, o último caudilho antiimperialista.

Glauber Rocha sacou que Wainer era mais rooseveltiano que getulista.


quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O último gênio a visitar Prelúdio e Fuga do Real

Marxizar Cascudo e cascudizar Marx

Do meu amigo Vicente Serejo vem por telefone o amável convite e, ao mesmo tempo, intelectualmente espinhoso, para evocar o último gênio a visitar Luis da Câmara Cascudo no assombroso livro "Prelúdio e Fuga do Real".

Na casa da rua Junqueira Aires subindo as escadas o convidado é anunciado pela empregada:

– Seu Cascudo, tem aí um homem barbudo, gordo, falando uma fala que não é daqui.

Já entrando, cordial e bem educado, mas sem o cerimonial burguês. Era Karl Marx, o autor de O Manifesto do Partido Comunista.

– Frederico Engels não veio?

– Não - respondeu Marx - Ele está cuidando da edição do segundo volume de O Capital.

O diálogo interpessoal desfaz o mal entendido epistemológico. Marx considera Cascudo o intelectual socializado no amor pelo povo.

Quem teria amado o povo tanto assim?

O socialismo do povo está em você, don Luis, amar e conhecer em profundidade, 150 volumes sobre a produção e a reprodução das gentes brasileiras.

É preciso dialetizar o tempo e o espaço, além do cotejo biográfico e das preferências subjetivas. O paradigma é Honoré de Balzac, revolucionário no romance e conservador em termos políticos.

– Você nunca me citou em seus livros. E teve do comunismo a deformação stalinista corrente na década de 30. Isso, no entanto é aparência, não a essência das coisas. Quanto à necessidade da ciência para distinguir a essência da aparência, você escreveu um tratado materialista com originalidade daqui de Natal.

Sentado na rede de dormir Karl Marx refere-se à ciência do povo extraída da tradição, que é o lugar culturalmente revolucionário em país colonizado.

Não há dissídio entre folclore e marxismo, a não ser no salão burguês, conforme evidenciou Edison Carneiro, pesquisando Umbanda nos terreiros de Salvador.

A oralidade folk antecede a erudição letrada. Na Itália o subversivo Pier Paolo Pasolini juntou no cinema épico o marxismo com a cultura popular. “Eu sou uma força do passado”, dizia ele. O novo Dante do folclore escreveu um longo poema sobre Antonio Gramsci.

Equívoco é identificar tradição (o que se transmite oralmente) com defesa da propriedade privada.

O historiador potiguar mostrou que o dia a dia supersticioso do povo gira em torno da força de trabalho, a qual não deveria ser sacrificada à acumulação de capital. Resulta daí a expressão lúdica, o homo ludens na cultura popular, que se traduz pela predominância do valor de uso, digamos, a economia política do solidarismo. No regime socialista o mutirão é uma espécie de adjutório sem os donos dos meios de produção.

O trabalho é meio de vida, não de morte. Essa frase está em um dos livros do mestre que corrigiu o aforismo nababo de Lombard Street: time is money, mas – atenção – dinheiro não é tempo.

Absolutamente não importa que não houvesse operário e fábrica na Natal plebeia de Fabião das Queimadas.

O filósofo Epicuro era comunista na Grécia, segundo tese de doutorado de Karl Marx. A educação do desejo. Os sentidos se educam.

O mundo é meu amigo, segundo o filósofo do jardim das delícias.

A filosofia da miséria é a miséria da filosofia recusada pelo folclore. Vale a frase de Luis da Câmara Cascudo: viva a fartura que a miséria ninguém atura.

Karl Marx tinha razão de visitar o Epicuro do Nordeste.

Marxizar Cascudo e cascudizar Marx, eis a diretriz revolucionária para o povo brasileiro.

Saravá.

Karl Marx desceu as escadas como subiu naquela tarde de verão.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Do tiro no peito de Getúlio Vargas ao tesão que Lula tem pela vida


Lula sem bala na agulha

Lula ante o indeclinável imperativo do desmascaramento histórico: chutar o pau da barraca e escancarar sem rebuço as ladroagens dos bacanas, empresários e políticos, inclusos os proprietários de jornais e TVs.

A privatização internacional foi iniciada sob o auspício de juízes e promotores que envergam as togas entreguistas e impatrióticas da telenovela.

Urge autocrítica radical e implacável de si, porquanto seu partido desacreditou a capacidade revolucionária da classe operaria, não só de São Paulo.

Indicar um candidato às eleições de 2022 somente logrará efeito mediante um abrir o jogo que abale a hipocrisia da burguesia bandeirante. Sabemos da historia repetida como farsa, porém não se trata da mesma situação vivida em 1954 por Getúlio Vargas entre a vida e a história.

Quem conhece a cozinha do trabalhismo não pode olvidar que Leonel Brizola, embora reconhecesse a magnitude da crise de 1954, discordou do derradeiro gesto suicida de Getúlio Vargas, encarando-o sob o signo da desistência política, pois era possível fazer alguma coisa para enfrentar o imperialismo e os seus lacaios lacerdistas.

Leonel Brizola no cemitério de São Borja, diante da sepultura de Getúlio Vargas, perguntou a Lula se teria alguma coisa a falar com o ex-presidente suicidário. Desde 1979, por ocasião de seu primeiro encontro com Lula em São Paulo no sindicato, certificou-se que o líder metalúrgico nada sabia a respeito de Getúlio Vargas, o maior líder burguês da classe operária, segundo o historiador Nelson Werneck Sodré.

O PT chegou a manejar cinco mil diretórios e o seu líder viveu em paz com todas as classes sociais. Proeza de bonapartismo.  Companheiro de viajem da burguesia internacional. Isso culminou com a chapa Dilma-Temer sob a anuência dos sindicalistas aburguesados. Nem se diga que haja abismo entre palavras e atos. Lula nunca se considerou de esquerda, marxista, nacionalista, antiimperialista. Ele tem sido um embaixador da luta de classes.

Acreditou e talvez ainda acredite que a justiça seja apartidária. Os juízes do Supremo Tribunal Federal são nomeados pelo Presidente da República. Lula nomeou quatro.

Será que temos de procurar juízes em Berlim e em Quixeramobim?

João Goulart errou na escolha dos ministros militares Kruel, Jair Dantas, Peri Bevilacqua. Não nomeou o general Osvino Ferreira Alves.

João Goulart foi derrubado não porque se moveu à esquerda, mas porque se agarrou à direita.

A psicologia bizonha de Lula pós-xilindró não o redime de ter impedido que Leonel Brizola chegasse ao poder em 1989.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Leonel Brizola, São Paulo e Índios

Cena do filme Anchieta, de Sarraceni. Quando deus é a morte do outro

Raivoso, neurótico, ressentido por descer o sarrafo na hegemonia econômica e cultural exercida por São Paulo, a ideologia dominante na periferia capitalista. Quanto a isso tenho os meus antecedentes: Walter da Silveira, Gunder Frank e Glauber Rocha. Sem falar em Oswald de Andrade que mostrou que a classe dominante paulista é xifópaga do capital estrangeiro.

Os intelectuais paulistas de direita, originários do constitucionalismo de 32, contraíram uma tara exógena que se prolonga com o petucanismo consular.

Escrevi Leonel Brizola e a História. Além de protagonista, o historiador, intérprete do passado que explica o presente e aponta para o futuro.

Reparo que “teoria” etimologicamente significa ver. Ver as coisas, ver os acontecimentos, ver as ideias, enfim, ver com os olhos livres.
Ver e ouvir o fio da história. E, nesse aspecto, ousaria dizer que não há outro entre nós a não ser Leonel Brizola.

Não é fácil deparar com um político que escreva, que fale, que comente o sentido histórico sobre o que está fazendo.

Na maioria das vezes quem atua não escreve sobre o que está acontecendo. Atuar e pensar a história ao tempo, eis o exemplo de Lênin e Trotsky, os dois intelectuais que fizeram revolução russa de 1917.

Quantas e quantas vezes Leonel Brizola não repetiu que vinha de longe, que conhecia as manhas e artimanhas da história. Atenção: quando digo historiador não é escrever tese acadêmica de história. Isso tem às pencas por aí.

O presente como história foi abordado por Leonel Brizola em seus gestos e em sua prosódia.

Leonel Brizola sempre foi contra (antes de surgir o malvado Paulo Guedes) a concepção segundo a qual os velhinhos são inúteis à economia.

Aos velhos aposentados a morte.

Jair Bolsonaro é bruto, tribal e sádico. O cristianismo democratizou Deus, mas o nosso Deus não pode ser o Deus dos outros. Estou com Karl Marx contra mundum.

Na Bolívia, a Bíblia branca mata os índios. A Bíblia é o maior best-seller genocida. Willian Morris, o socialista romântico inglês, de quem o historiador marxista Eduard Thompson era admirador e entusiasta, queria a “educação do desejo”, que não é a mesma coisa que “educação moral”, ou seja: “to teach desire to desire, to desire better, to desire more and above all to desire in a different way”.

Darcy Ribeiro, que ficou sem escola para divulgar o seu próprio pensamento, dizia que a luta de classes iria cada vez mais enredar-se na etnia. Etnia é luta de classes. A nova guerra do Paraguay está se configurando na Bolívia: Trump, UDR bandeirante e Planalto Bolsonaro.

Vamos tacar fogo na rede de dormir.

Amém.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Ralé Jessé de Souza & Rapina Nildo Ouriques

A luta de classes está na estrutura do soneto

O que caracteriza a loucura da sociedade brasileira é a coexistência de capital estrangeiro com massa marginalizada classificando-se abaixo do proletariado.

O brizolismo revolucionário, antes e depois de 1964, foi uma resposta à população oprimida e despossuída. Por isso a TV Globo estigmatizou Leonel Brizola de traficante de drogas.

A ditadura de 64 pró-capital estrangeiro aumentou os sobrantes marginalizados. A igreja (católica e pentecostal) colocou a culpa da pobreza em motivos psicológicos ou na conduta errada. A pobreza foi encarada como um acidente. O pobre acha que é da vontade divina que decorre sua miséria.

Outra loucura da nossa sociedade é a existência de uma massa marginalizada sem comando de uma vanguarda política. Não há partido nem liderança revolucionários.

A classe dominante viu no brizolismo o fantasma de um subproletariado deserdado e potencialmente anti-ordem. Leonel Brizola e Darcy Ribeiro pensaram o tempo todo na capacidade e nos limites da insurgência das camadas oprimidas.

Para o relativismo pós-moderno, a luta de classe não é senão um produto da imaginação marxista doentia. Nas ciências sociais gradativamente vai desaparecendo a palavra “capitalismo”, substituída por “economia de mercado” ou economia competitiva.

O badaladíssimo sociólogo criptopotiguar Jessé de Souza recolocou em cena a classe social, mas sem aprofundar o domínio classista e gerador da pobreza. A “ralé” é a mistura pobretária com o subproletariado, escória, marginal, arraia-miúda, desclassado, refugo, massa excedentária, lumpem-proletariado, classe perigosa.

Camada oprimida abaixo do proletariado, o subproletário não consegue emprego estável, é um desempregado, um subempregado com emprego precário e provisório.

Atenção: o critério da renda não define o que é a classe social. Essa é a visão burguesa, empiricista, economicista. Jessé de Souza como bom devoto do PT eclesiástico, socialismo de religião mais do que da luta de classes, desconhece o conceito marxista de classe social. Segundo Jessé, o marxismo tem visão reducionista da classe social pela posição que esta ocupa no processo econômico de produção.

Rosa Luxemburg dizia que a teoria marxista não é senão o reflexo da luta de classe engendrado pelo capitalismo. Não existe capitalismo de classe média e de nova classe média. O conceito marxista de classe é econômico, social, político, psicológico e cultural. A sociedade em classe atravessa todos esses níveis, no entanto afirma Jessé que o marxismo não apreende os “valores imateriais” na reprodução das classes, “a antiga visão marxista da luta de classes” está confinada à “imagem da esfera pública e da revolução política”. Com isso o marxismo deixa “de ver a luta de classes, cotidiana, mas invisível e menos barulhenta, mas não menos insidiosa”.

Afinal, caro colega, onde é que não há ruído na sociedade de classes? A mercadoria é barulho só. A divisão social do trabalho não deixa de ser acústica. Sobre os “valores imateriais” realça-se que a esfera imaterial é tão importante para o marxismo quanto a exploração capitalista material. A rigor não se pode separar, a não ser com abordagem fenomenológica e positivista, classe social de consciência de classe. Sem burguesia não há proletariado, e vice-versa.

Em A Sagrada Família Engels esclareceu que o operário não descobre por si a verdade revolucionária, o intelectual (o partido) é quem revela ao operário sua missão revolucionária. Segundo Ludovico Silva, a mais-valia ideológica é que torna possível a extração da mais-valia material. O exemplo eloquente de mais-valia ideológica é a televisão. Ludovico corrige Theodor Adorno: não é indústria cultural, é indústria ideológica, indústria da consciência, ideologia na acepção marxista, algo que encobre, falseia, justifica os interesses materiais e de classe, como é o caso da “pesquisa de opinião” ou do best seller em sociologia.

A palavra “teoria” significa ver nítido, ver com clareza, ver com ouvido desentupido. A ideologia ensombreia e oculta as relações sociais. Por exemplo: eu não posso estudar as “classes perigosas” na sociedade brasileira e não relacioná-las com o sistema capitalista mundial. É o que Joaçaba ensinou a Nildo Ouriques: a rapina é imanente ao conceito de dependência de Ruy Mauro Marine.

A rapina é a causa do mal estar, do pauperismo, da boçalidade, a rapina é o todo. As ciências sociais estão tele dirigidas pelo capital. Atenção ó Boa Ventura dos Santos, luta de classes existe não apenas quando acontece uma greve, uma guerra, uma revolução. A luta de classe está até na estrutura do soneto, dizia o poeta no filme Terra em Transe.

Ludovico Silva, citado amiúde por Hugo Chávez, é autor de O Estilo Literário de Marx, que é tão importante quanto História e Consciência de Classe de Georgy Lukàcs, livro que não foi e não é lido pelos sociólogos alpinistas da estratificação social que escondem o imperialismo debaixo do currículo Lattes.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Viva o solcialismo


Fala do sociólogo Gilberto Felisberto Felisberto sobre o filme que realizou sobre Bautista Vidal "Socialismo limpo, capitalismo sujeira". Imagens de Felipe Martínez. Edição Matheus Rosa.