domingo, 29 de novembro de 2020

Leonel Brizola o historiador que não falseou a história


De piloto a matemático, que é quase a mesma coisa, Sylvio Massa escreveu o indispensável livro Marx e a Matemática. Resenhou o meu ensaio Leonel Brizola a História o Historiador, tendo por título o seguinte: aquele que não se vendeu ao império. 

Inspirando-me nessa lúcida resenha, faço aqui algumas considerações sobre o historiador idôneo que não falseou a história do Brasil até 2004, ano de sua morte. Em meu livro procurei mostrar o nexo entre história e historiador em se tratando de Leonel Brizola. Antes de tudo uma questão de signo: a ambição de permanecer na posteridade por meio da oralidade e ou da escrita. Sabemos que ninguém, os pósteros, ouviu a voz de Marx e Engels porque dela não há registro sonoro. Esses dois intelectuais comunistas revolucionários escreveram milhares de páginas. Serão para sempre lembrados e estudados.

Em sua longa vida Leonel Brizola mais falou do que escreveu. Destarte, não quis escrever as suas memórias. Por que não o fez? Recusou escrevê-las não obstante os amigos o pedirem. Ficou famosa uma resposta sua: memórias, não; vou escrever umas cartas para o seo Guaragna. 

O gauchão João Carlos Guaragna, entendido em rádio amador, trabalhou nos Correios em Porto Alegre. Foi ele o primeiro a sacar que havia em Brasília uma conspiração golpista para não deixar João Goulart assumir a presidência da república. Não é um disparate conjecturar que se houvesse televisão em 1961 não teríamos a Campanha da Legalidade, combatida por Orlando Geisel e a sua maneira por Tancredo Neves. 

Haveria muita coisa a evocar de seus dias idos e vividos. Leonel Brizola de propósito não escreveu memória. É intrigante em um historiador como ele, insólito historiador porque também protagonizou a história. Cuidava sobremaneira em transmitir o fio da história, condição essencial à emancipação popular. Trata-se, em outras palavras, da transmissão oral da política. 

O caudilho da Pátria Grande dizia que vinha de longe. Vinha de longe na história do Brasil desde 1945, antes mesmo de findar a Segunda Guerra Mundial. Por ter vivido e muito observado sabia que a mentalidade capitalista tem horror da história. A burguesia não tolera a história. O que passou, passou. É inútil refletir sobre as águas passadas. Para o burguês, houve história, mas não haverá mais. Foi isso o que Marx afirmou em 1848, ano em que foi publicado o Manifesto do Partido Comunista

Ágrafo de pai e mãe, Jair Bolsonaro quer hoje abolir a disciplina de história nas escolas. Visitando Buenos Aires, Ortega y Gasset informou que os países novos precisavam conhecer o passado mais do que os países velhos. É que os países novos nasceram sobre o jugo da dominação colonial que reprime a reminiscência. Colônia amnésica. O imperialismo valendo-se do poder da televisão, almeja perpetuar a ausência de memória do povo brasileiro. A memória tem de ser solapada todos os dias. É esse o propósito da televisão. A telenovela corroeu o significado do golpe de 1964 e Jair Bolsonaro chegou ao poder, a despeito dos histéricos salamaleques da patota Globo News, cuja alma é profundamente bolsonara. Paulo Guedes e Henrique Meirelles dançam a mesma valsa do Banco de Boston que deu grana para o governador Ademar de Barros comprar armas em 1964 a fim de derrubar João Goulart. 

O irlandês James Joyce tinha razão ao acusar a história de pesadelo. Não devemos olvidar que a Dublim de Ulisses era uma cidade ocupada pelo colonialismo britânico. Quando o presidente Lula resolveu, sabe lá com quais botões, convidar Henrique Meirelles para integrar o seu governo, Leonel Brizola sem pestanejar rompeu de vez com o PT por causa desse deletério tabuleiro imperialista. Atenção: esse enigmático personagem anti-brizolista dará as cartas no governo de João Dória.

A falta de memória histórica é um melancólico sinal de povo idiotizado que leva bordoada de tudo quanto é lado. Recordo-me que Lula foi várias vezes advertido por Leonel Brizola: a história do Brasil, meu caro, não começou no ABC paulista. Há muito mais coisas entre o sindicato e a sacristia da igreja católica. Lamentavelmente para si e para o país, Lula acreditou, ouvindo o sociólogo Francisco Weffort e o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, que era o novo operário ex nihilo sem vínculo algum com o operariado de antanho. Eu sou o novo do novo. Eu sou o metalúrgico fodão. Caiu na conversa mole dos professores colonizados da USP, dos clérigos udenistas e da imprensa burguesa, Estadão e Folha de São Paulo. Não assimilou coisa alguma da experiência histórica de Leonel Brizola. 

Era justamente isso o que queriam de Lula a FIESP e os generais norte-americanizados que golpearam João Goulart em 1964. Leonel Brizola acentuou de maneira nítida o menoscabo pela história que levaria mais tarde Lula à cadeia. O grande lance teórico de Leonel Brizola em 1945 foi ter percebido que a história não poderia ser reduzida a um mero conflito entre o capitalismo fascista da Itália e Alemanha e o capitalismo liberal da Inglaterra e Estados Unidos. Ao invés de olhar para as proezas de Churchill, Stalin e Roosevelt, Leonel Brizola ficou atento em Getúlio Vargas, o ditador sanguinário segundo a UDN e o partidão. Leonel Brizola, ainda que não se declarasse marxista, tinha o anti-imperialismo em sua certidão de nascimento na política. Nesse aspecto   diferenciou-se de Getúlio Vargas e João Goulart. 

O triste paradoxo é que seu partido catecista, pragmático e oportunista, enterrou Leonel Brizola justamente por ter sido inimigo do imperialismo. Isso, segundo os novos dirigentes malandros do PDT, não daria voto, não elegeria ninguém, era suicídio político. Repete-se a mesma perfídia em relação à Rede Globo que foi perdoada por ter conspirado a favor do golpe de 64. Se Leonel Brizola fosse conivente aos interesses do doutor Roberto Marinho, teria sido eleito presidente da república. Ele teria errado ao denunciar a Globo como anti-povo e anti-nação. 

Hoje a necrose bolsonara, com a sua volúpia evangélica de contar os cadáveres, vangloria-se de sua posição anti-Globo, como se isso fosse igual à atitude de Leonel Brizola, para quem a Rede Globo é um agente das perdas internacionais. Não se esqueça, gentil leitor, que Jair Bolsonaro foi engendrado pelo programa de auditório católico da TV Globo. Para além da aparência: Bolsonaro e  Globo tudo a ver. A televisão, não só a TV Record do bispo Macedo, tem o maior xodó pelo vende-pátria Paulo Guedes. A julgar pela metodologia do historiador Leonel Brizola, a nata da TV Globo é de cabo a rabo Jair Bolsonaro. 

A Rede Globo que votou em Geraldo Alckimin e votará em John Dorian, não acredita que o endolarado Henrique Meirelles seja antípoda do tabaréu mal vestido Paulo Guedes. Ambos representam os interesses das corporations. Não há a menor dúvida que, se vivo fosse, Leonel Brizola discursaria lá na praça Tiradentes que sem FHC não haveria jamais Jair Bolsonaro. 

A verdade é que Leonel Brizola foi, como se dizia antigamente, um subversivo e dialético historiador. Em A história da Irlanda Engels dizia que a historiografia mais bem paga é a que melhor falsifica a história para atender os desejos e propósitos da burguesia. Não é preciso dizer mais nada, nem me foi perguntado.

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terça-feira, 10 de novembro de 2020

"o som da TV não é inocente"

 


Gilberto Felisberto Vasconcellos: se eu pudesse dizer algo aos jovens, eu diria: desliguem a televisão. 

Imagens: Felipe Maciel Martínez

domingo, 1 de novembro de 2020

O exímio historiador Leonel Brizola que não foi reconhecido como tal


Texto de Waldo Matos Martins

Atenção, leitor: estamos nos referindo ao historiador Leonel Brizola, tal qual Lenin e Trotsky escreveram a história da Revolução Russa.

Leon Trotsky escreveu num de seus últimos livros que Lenin não criou uma teoria do leninismo, e sim interpretou e aplicou na prática política as ideias de Karl Marx e Friedrich Engels, os autores de O Manifesto Comunista. Leonel Brizola, filho espiritual (Jango também o foi) de Getúlio Vargas, também não criou uma teoria do brizolismo. A diferença é que Lenin chegou ao poder e morreu nele em 1924. 

Durante sua vida Karl Marx não viu o surgimento do imperialismo, enquanto Leonel Brizola sofreu um golpe de Estado em 1964 orquestrado por Washington que o impediu de ser presidente da República a fim de reatualizar as diretrizes básicas da Carta Testamento. Essa Carta para ele foi o grande ensinamento sobre o imperialismo. Todo dia a consultava transido de admiração. 

O que Gilberto Felisberto Vasconcellos observa com absoluta originalidade é que no trabalhismo getuliano havia mais combatividade anti-imperialista do que nos autores marxistas. Leonel Brizola nasceu do ponto de vista político anti-imperialista em 1945. A compreensão do presente como história, a essência do método marxista segundo György Lukács, encontra-se na reflexão de Leonel Brizola quanto à sua própria tragédia: ele tinha todas as condições subjetivas para chegar ao poder para transformar a sociedade brasileira. Não sabemos se leu James Joyce quando este escreveu o seu romance Ulisses e a história é um pesadelo. Baita pesadelo com a ditadura de 1964 e sua retomada com Jair Bolsonaro apoiado pelos milicos entreguistas.

Depois de 1979, voltando do exílio, reciclou-se o quanto foi possível diante de uma conjuntura refratária com televisão, sem perder o rigor trabalhista. Fizeram de tudo para cortar seu sonho, seu desejo, sua missão, que nunca foi absolutamente passeio narcísico ou hedonista tal qual a curtição de FHC e Lula com as galas e os gozos mundanos do poder. O leitor ficará atônito não com as revelações, mas sim com a audácia na maneira de Gilberto Felisberto Vasconcellos focalizar um dos maiores líderes revolucionários da América Latina. Governador do Rio Grande do Sul, em conversa assídua com Paulo Schilling, refletiu sobre o que lhe parecia o ângulo do imperialismo: as “bombas de sucção” que rapinam nossas riquezas para fora, antecipando a futura expressão “perdas internacionais”. 

Essa expressão designa com exatidão o que o vende-pátria Paulo Guedes está drenando os frutos do trabalho do nosso povo para engordar as multinacionais. O grande historiador, como dizia Isaac Deutscher, tem alguma coisa de assombroso quando preludia o que vai acontecer no futuro. Isso se deu com Leonel Brizola historiando os acontecimentos de que participou durante 50 anos de história do Brasil.

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sábado, 31 de outubro de 2020

Brizola, a história o historiador



Gilberto Felisberto Vasconcellos fala sobre seu mais recente livro "Leonel Brizola, a história o historiador", editado de forma independente e no formato eletrônico. O livro conta a trajetória do político gaúcho, comparando-o a outros grandes da política mundial como Lenin e Trotsky.

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terça-feira, 27 de outubro de 2020

Novo livro de Gilberto Vasconcellos é sobre Brizola


Já está à venda o ebook de Gilberto Felisberto Vasconcellos, "Leonel Brizola - a história o historiador", a partir do qual o professor desvela a vida e as ideias do político gaúcho que se insurgiu com armas na mão para garantir a posse de João Goulart como presidente depois da renúncia de Jânio Quadros. É um trabalho primoroso e saboroso, a considerar a escrita única e rebuscada de Gilberto. 

No livro, ele apresenta, para além da já conhecida biografia do ex-governador do Rio, a sua faceta de historiador, ou seja, aquele que faz e registra a história do seu tempo.

O novo livro de Gilberto Felisberto é uma recuperação histórico-crítica da atuação de Leonel Brizola desde o levante da Campanha da Legalidade até sua morte. Um trabalho absolutamente original porque compara Leonel Brizola a Lênin e Trotsky, personagens da Revolução Russa de 1917 que, igualmente fizeram história e ao mesmo tempo foram eminentes historiadores.

A jornalista Elaine Tavares é a responsável pela edição do material, juntamente com Guilherme Gravina, e o jornalista Rubens Lopes responde pelo projeto gráfico. "Trabalhar com o Gilberto é ao mesmo tempo mergulhar no Brasil profundo e subir aos céus, pois sua criatividade, entusiasmo, originalidade e conhecimento são vertiginosos. O livro sobre Brizola mostra que o caudilho gaúcho tinha muita clareza do tempo que vivia e sabia muito bem o que queria para o Brasil. Independência, soberania e liberdade. Mergulhar nesse livro é mergulhar também no país com o qual ainda sonhamos". 

O livro está à venda na internet por apenas 15 reais e pode ser adquirido nesse endereço: 

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terça-feira, 6 de outubro de 2020

Brizola historiador: novo livro de Gilberto Felisberto Vasconcellos




O escritor e professor Gilberto Felisberto Vasconcellos está terminando a edição de mais um livro na sua carreira literária. Desta vez o tema é Leonel Brizola, político gaúcho que se insurgiu com armas na mão para garantir a posse de João Goulart como presidente depois da renúncia de Jânio Quadros. No livro ele apresenta, para além da já conhecida biografia do ex-governador do Rio, a sua faceta de historiador, aquele que faz e registra a história do seu tempo.

Gilberto Felisberto Vasconcellos faz uma recuperação histórico-crítica da atuação de Leonel Brizola desde o levante da Campanha da Legalidade até sua morte. Apresenta os fatos e mostra que o caudilho gaúcho, mais do que um personagem da história brasileira, também produziu história ao protagonizar o mais importante momento de luta da história contemporânea. Não bastasse isso, depois do exílio, Brizola se reincorpora às lutas no país mantendo vivas as bandeiras do nacionalismo e do anti-imperialismo. 

Gilberto Felisberto Vasconcellos passeia pelas veredas trilhadas pelo político gaúcho e conta a história política do país desde a visão daquele que é um dos mais importantes nomes da política brasileira. Trata-se de um livro iluminado sobre Leonel Brizola. É também um trabalho original porque compara Leonel Brizola a Lênin e Trotsky, personagens da Revolução Russa de 1917 que, igualmente fizeram história e ao mesmo tempo foram eminentes historiadores.

O livro está em fase final de editoração e em breve já estará disponível para o grande público. O trabalho de edição é de Guilherme Gravina e Elaine Tavares, e a finalização gráfica do jornalista Rubens Lopes. 


domingo, 15 de março de 2020

A revolução brasileira tematizada por Nildo Ouriques: ou massa ou classe social ou ambas?



Da teoria da dependência a mais importante lição é que a estrutura de classes do país mantém conexão com as condições histórico-mundiais, e que portanto é o geral que prevalece sobre o particular.

O regime político de 64 até hoje não alterou o modelo econômico for export. Tudo ou quase tudo para fora.

O conflito burguês interclassista (burguesia local contra burguesia estrangeira) quase inexiste. O capital estrangeiro sempre se dá bem. Nossa integração subalterna ao sistema econômico mundial é sagrada. Todos estão de acordo, Frias, Mesquita, Saad, Macedo, Civita, Marinho.

Somos todos Chicago boys.

A revolução socialista deve ser concebida através da contradição entre a força de trabalho e a concentração de capital nacional e estrangeiro. Como mobilizar essa força de trabalho contra os seus inimigos de classe? Que classe social terá condições de nacionalizar o país e com isso trazer o bem-estar para o povo? A Reforma do despachante Paulo Guedes é o adeus definitivo ao bem-estar social.
A visão tecnocrática da burguesia é que todos os problemas se resolvem pela ciência e pela técnica.

Diante do pauperismo avassalador apela-se para polícia e Exército. Essa é a política da classe dominante na versão Pinochet-Médici-Bolsonaro, que se conflui com o ex-Alkimin, o Dória Grey da Mario’s Covas Family que é também portador da utopia Taurus.

A imprensa e a classe média entoam o estribilho de que o país está eternamente condenado por causa da corrupção dos políticos. Todos estão convencidos da inviabilidade das instituições democráticas e o imperativo de enraizar o poder na polícia, por isso Sergio Moro é a estrela que sobe, correspondente ao Pinochet boy Paulo Guedes. Todos protegidos pelo judiciário e que não têm medo de mobilizações populares. O povo é capacho e covarde.

Nesse contexto surge Nildo Ouriques do Psol e propõe a ruptura através de uma (ainda vaga e imprecisa) revolução brasileira que não conta com a participação de nenhum setor da burguesia local. Nesse aspecto repisa o que diziam os seus mestres Rui Mauro Marini e Gunder Frank acerca da burguesia local, leão de chácara da burguesia metropolitana. A revolução brasileira não deve contar (o que seria um sinal de irrealismo) com um suposto conflito interclassista entre as burguesias locais e imperialistas.

O que fazer do ponto de vista da mobilização política com a massa marginal, urbana e rural, que corresponde a mais da metade da população? Não há como absorvê-la nem submetê-la ao regime salarial, à “disciplina salarial” como dizia Roberto Campos, o guru de todos os economistas reacionários e genocidas. O destino da escória social é a prisão ou o extermínio à Jair Bolsonaro.

A reprodução dependente da acumulação de capital não pode prescindir da progressiva repressão. A teoria da revolução brasileira não tem dado atenção à questão rural, ou seja, à multinacionalização do campo. O termo agrobusiness surgiu em Harvard. Hoje a capitania hereditária é multinacional. Leonel Brizola já dizia, chamando atenção do grande burguês de Santa Catarina, Bornhausen, que quase não havia mais brasileiro proprietário de terra.

O mérito de Nildo Ouriques é mais do que insurgir contra o complexo cultural de inferioridade, que foi objeto de análise de Nelson Werneck Sodré, Álvaro Vieira Pinto, Darcy Ribeiro, Glauber Rocha. O seu grande mérito é recusar a melancolia impotente da esquerda que abdicou da vontade de transformar o país.  A maioria dos intelectuais não acredita na capacidade revolucionária do proletariado nem no pobretário sem eira nem beira. Não quero com isso cometer injustiça que seria enaltecer o Nildo Ouriques ético, mas quanto ao teórico revolucionário economizar elogios.

Em sua militância haveria a vontade revolucionária, mas não a razão de ser revolucionário no que tange às demandas sociais e de classe. Afinal, quem detém o saber da transformação da sociedade brasileira? Tão importante quanto às classes sociais a favor ou contra, é a liderança, isto é, o “caudilho” em um partido com direção revolucionária para guiar o povo.

O reformismo socialmente genocida de Paulo Guedes é a interação entre o neoliberalismo rentista e a superexploração do trabalho com a massa crescente de pobretário, ou seja, as camadas abaixo do proletariado.

A era miliciana substitui o bacharel Carlos Lacerda. Este foi substituído pelo tipo rufião, vereador, deputado, senador. O Rio de Janeiro é a vanguarda de pastores evangélicos com policiais milicianos sob a guarida do ministério da Justiça. O sadismo político da família bolsonara está amparado na crueldade do nababo Trump. Ninguém tasca os fratelli mimados da Barra da Tijuca que sob proteção dos militares que excursionaram no Haiti lendo as obras completas de Olavo de Carvalho.

A classe média e os setores populares dão trela à demonização da Venezuela feita por Sérgio Moro. Com exceção de Maduro, a América Latina inteira está amiguinha do imperialismo norte-americano com os sucessivos golpes jurídicos no Paraguay, Honduras e Brasil. Dilma, diferente de Jango, não ensaiou nenhuma atitude contra os EUA, mas estes deram sustentáculo imediato ao golpismo de Michel Temer.

Lula no xilindró. Bolsonaro eternamente grato ao Juiz Sérgio Moro. Trump sabe que tem um acólito na América Latina. É difícil afirmar que exista burguesia bolsonara que quer lucrar sem produzir nada. Os evangélicos de terno tergal abandonam sua demagogia pacífica para defender o extermínio praticado por Messias Bolsonaro e Edir Macedo. O signo criminal é onipresente.

A perspectiva de um “mondo migliore” não existe. A novidade é assumir sem disfarce o genocídio, o que pressupõe que stores da população defendam o extermínio social dos que não conseguem arrumar um lugar no mercado. Essa é a psicologia cafajeste do extermínio que ressoa na reforma da previdência de Guedes. O campo de concentração sem concentração divide a herança espermática: quem deve ou não deve desaparecer. A matança dos pobres. O modelo vem das Filipinas com o presidente Rodrigo Duterte. Eu já ouvi classe média na banca de jornal dizendo que bom não seria o corona vírus tomar conta da favela, aí haveria uma bela limpeza. De resto, limpeza é o vocábulo mais adorado pela gangue bolsonara. Limpeza no sentido hitleriano.

A submissão ridícula ao imperialismo atingiu o paroxismo com o episódio do filho do presidente que almejou o cargo de embaixador nos EUA.

Peça essencial do triunfo de Jair Bolsonaro foi Sergio Moro a visitar Harvard pela primeira vez em 1998. Graças ao mensalão de 2004 o juiz de Maringá ganhou nomeada, tornando-se sex symbol da classe média e prodígio do Departament of Justice em 2009.

Pasolini dizia que o sucesso é a outra face da persecuzione.

Nildo Ouriques contesta que Bolsonaro seja fascista, colocando em pauta esse fenômeno mais complexo da história no século XX: o fascismo.

Trotsky dizia que havia conexão entre o fascismo e o stalinismo, mas uma coisa não era idêntica a outra. Para Nildo Ouriques, Bolsonaro não é fascista, é neoliberal pesado, neoliberal obscurantista, neoliberal truculento. É importante explicar isso porque para o povo o sujeito liberal é o boa praça, flexível, gente boa, que não é dogmático, que não é turrão ou cabeça dura.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Marx, Glauber, Cascudo, Adorno e eu

Luis Câmara Cascudo


Neste título enumerativo caberá incluir o crítico de cinema Walter da Silveira. Aí sim a roda fecha com o poeta venezuelano Ludovico Silva. O que avulta é a ironia do “eu”, mas que isso não seja encarado como autofilia, a estima exagerada de si mesmo, um narciso bobão.

O linguista marxista Lindberg Campos Filho escreveu inteligente resenha sobre o meu livro Quebra Cabeça do Cinema Novo: é o estilo que revela minha maneira de ver o cinema e a sociedade.

Não estarei ruim do juízo em afirmar que, de acordo com o crítico, para entender o conteúdo desse livro, há que destrinchar a forma, o que não quer dizer formalismo. Destarte, essa questão de forma e conteúdo é o maior rebosteiro da crítica, não só marxista. Ao que parece me dano e me salvo na forma, segundo ele.

Conteúdo revolucionário implica forma revolucionária, mas esta inexiste sem conteúdo revolucionário. Todo mundo sabe disso depois da poesia concreta com Décio, Augusto e Haroldo, sem esquecer o trotskista Edmund Moniz em sua reflexão sobre Canudos. Para mim, o mais difícil, como dizia Marx referindo-se a Honoré de Balzac, é explicar a relação contraditória da personalidade, a autonomia da subjetividade do autor com a obra materializada em signos objetivos.

O autor pode ser de direita em sua opinião subjetiva e revolucionário em sua obra. A isso dá-se o nome de astúcia da mimese para explicar o “paradoxo”, não só em se tratando de ficção. É por causa disso que entrevistar o autor sobre o que ele pensa não revela grandes coisas. A caracterologia do autor (seus traços psicológicos) não é suficiente para afirmar o significado de sua obra. Faço essas considerações porque Lindberg Campos Filho passou-me o sabão por querer juntar o kino marxista de Glauber Rocha e Walter da Silveira com o folk de Luis da Câmara Cascudo, escritor tido como anticomunista que fez parte do integralismo no limiar dos anos 30. Há fotos dele vestido de camisa verde, ainda que tivesse sido muito efêmero esse sarampão integralista, o qual não deixou nenhum traço em sua investigação sobre o povo brasileiro. Conheço pouquíssima gente que amou tanto nosso povo quanto Luís da Câmara Cascudo por conhecê-lo em profundidade.

Em 1934, no auge do integralismo, escreveu um livro notável, Viajando o Sertão, que não tem nada a ver com o ideário integralista. Não se depara com o nome de Mussolini em sua obra. Por outro lado, nunca falou de luta de classes como motor da história. Citou Lênin, se não me engano, uma única vez: “sem promessa não há revolução”. Em meados da década de 20 escreveu Lopez Del Paraguay defendendo o Império. Seu amigo Gustavo Barroso não só foi a favor da Guerra do Paraguay como de 1930 em diante militou nas hostes integralistas escrevendo livros péssimos; mas antes disso foi um excelente pesquisador do povo brasileiro. Etnólogo magnífico. Influenciou o estilo e a metodologia de Luis da Câmara Cascudo. Fato é que Gustavo Barroso de 1911 a 1930 foi revolucionário pelo amor à expressão e costumes do “poviléu”, como dizia. Terra do Sol é de 1902. Gustavo Barroso informou a geografia dos trópicos do romance nordestino de Lins do Rego até o cinema de Glauber Rocha, incluindo a escola energética da biomassa de Bautista Vidal e Marcelo Guimarães. É onipresente o sintagma “terra do Sol” na literatura brasileira do século XX.

Inexiste luta de classes no sol, mas sem pôr o sol na luta de classes não se entende o trópico e o colonialismo. O invasor holandês, marinheiro e mercantil, veio para cá a fim da rapadura, de que resultou a guerra dos holandeses. Sem a Terra do Sol de Gustavo Barroso não haveria a poesia Pau Brasil, embora Oswald de Andrade odiasse o integralismo e os “galinhas verdes”.

O sol-folk, o sol democrático do povo, remete ao desenvolvimento desigual: por favor, o sol não é paulista, segundo a sociologia de Gunder Frank que em seu Reorient deixou no entanto fora Oswald de Andrade que deu a dica: avancem para o Sol!

Tirem o folclore dos fotogramas de Glauber Rocha e o cinema deste perderá a vitalidade política terceiro-mundista de Barlavento, Barravento até Riverão Sussuarana, a onça faminta cantada pela vaquejada. O curioso é que o desafio amartelado em seus filmes colide com a opinião depreciativa que tinha do folclore, ao contrário do apreço pela “cultura popular”. Há muitos autores que não distinguem folclore de cultura popular, o que não é, no entanto, a mesma coisa.

Quem filmou Luis da Câmara Cascudo ao vivo e eloquente foi Walter Lima Junior. Documentário magnífico. Digo sem receio de errar que Luis da Câmara Cascudo está mais para Karl Marx do que para Plínio Salgado. A prosa estropiada na prosódia de Glauber Rocha deve-se mais ao fandango que ao Finnegans Wake de James Joyce. Essa prosódia, a partir da relação boca e orelha, é uma maneira de se comunicar evitando que o gringo invasor a entenda, espécie de idioleto curupira ecológico como se fosse um gogó vietcong dos trópicos. No romance Riverão Sussuarana Guimarães Rosa, que não era marxista, mata o gringo imperialista na facada. O Vietnã ganhou a guerra contra os EUA com canças de bambu, advertiu Jorge Abelardo Ramos.

Navegando na nau Catarineta com Bautista Vidal mudamos a grafia do socialismo para eliminar qualquer traço plúmbeo: socialismo é solcialismo. Arrenegamos o petróleo, combustível que não pode mover a sociedade socialista. Na revolução brasileira propagada pelo meu amigo Nildo Ouriques devem ser imprescindíveis o marxismo, a energia da biomassa e o folclore. Eis a ciência do povo à moda do som da viola registrado por Gustavo Barroso: “é o surtão da maritanha seu sinhô de meio mundo, de meio solo e meia lunha qui só pru mim manda embaixada ouve-me generá e atende este ilustre embaixadô qui in tua presença espera”.

O embaixador é João Guimarães Rosa em Riverão, o rio dialético de Heráclito, o river grecotupy. Releva dizer que o folclore sem marxismo corre o risco de tornar-se macumba para turista, todavia a revolução marxista não persuade a classe operária sem o inconsciente coletivo do folclore. Resulta daí a necessidade de uma programática revolucionária que faça a síntese de Karl Marx e Luis da Câmara Cascudo e que não os apresente como galos duelando.

Dêem-me licença senhoras e senhores, a natureza dos trópicos continua desconhecida. A natureza é o corpo do homem, segundo Karl Marx. Eu não sei se o autor de O Capital, diferentemente de Montaigne, chegou a tomar conhecimento da mandioca tão odiada por Roberto Campos. Mandioca, a rainha do Brasil. Por que não insistir na mandiocália comunista? Eis a distinção: socialismo no povo porque socialismo do povo ainda não há.

Não importa no encontro do marxismo com o folclore, que aliás já foi esboçado com o afro marxista Edison Carneiro, se à noite Luis da Câmara Cascudo puxava o terço antes de dormir. Meu amigo Marcelo Guimarães não estava pensando nos filósofos pós-modernos da Unicamp com o seu anexim: só pode ser considerado intelectual de verdade quem souber 50 nomes de cipó.

Atenção: o primitivismo repudiado por Glauber Rocha em Estética da Fome está ausente em Luis da Câmara Cascudo. Basta ler Prelúdio e Fuga do Real. A recusa do anedótico. O filósofo brasileiro tematiza um assunto vital e pouco estudado: a superstição. O que dá azar, o número 13, o passar debaixo da escada. Vai baixar noutro terreiro, Exu. Erramos ao tratar isso como retardamento mental, sinal de alienação, ópio do povo, que serve para a classe dominante explorar o proletariado. Assim, remar contra o iluminismo e o marxismo é supor que haja na superstição alguma coisa revolucionária.

Nacionalismo conservador não o define. O folclore é tão universal quanto o marxismo, revestindo-se de acentuada impregnação regional: psicologicamente o homem é regional, a fisiologia é universal. A região é a fala e na entonação está o destino. Em Estocolmo, colóquio de cientistas, na hora do jantar havia um garçom servindo e falando em inglês: na bucha, Luis da Câmara Cascudo lhe perguntou: de que parte do Ceará você é? – De Baturité.

A frase “o local é indispensável” foi repisada por Bautista Vidal para conceituar a tecnologia diferente da ciência. O pacote tecnológico forâneo, o abre-te-césamo da Cepal, corresponde ao deslumbramento pelo enlatado cinematográfico.
Não há nada de passividade no bumba-meu-boi. Nem impotência na mistura do frango que veio da Europa e do quiabo from África. O conceito de tecnologia do marxista Álvaro Vieira Pinto é cascudiano: papagaio não comeu? Morreu.

Longe de mim demonizar a tecnologia. Não há grupo humano sem técnica, mas o computador por si é incapaz de fazer revolução tecnológica ou de eliminar a fome.

O erudito e poliglota Frederico Engels, que gostou da gramática da língua portuguesa, queria conhecer a rede de dormir, mais ortopédica e higiênica do que a cama, segundo o médico Silva Mello que prefaciou Luis da Câmara Cascudo gozando o desajeitado equilíbrio de Einstein no Cosme Velho com dificuldade em acomodar-se sentado na hamaca boliviana.

Gostei muito da resenha de Lindberg Campos Filho, meio que cripto-adorniana a falar do meu suposto adornianismo, se bem que o filósofo da nova música não curtisse cinema: “cada vez que eu vou ao cinema eu fico, sem querer, mais estúpido e pior”. Gostava de filme mudo que nem Jean Luc Goddard gostava pelos intertítulos e a imagem sem a muleta sonora. Se não me engano, Glauber Rocha nunca citou Theodor Adorno, autor indispensável para se entender o capitalismo videofinanceiro. Os olhos e os ouvidos estão degradados pela mercadoria. O ouvido é o órgão onipresente na cultura popular, que desde Silvio Romero não oculta o trabalho na história do homem. Todo trabalho do homem é para sua boca, o trabalho como meio de vida, não como meio de morte, segundo o professor jagunço que, pasmem, escreveu A Crítica da Economia Política na História da Alimentação. O ponto de partida não é maçã, é a banana.

Ruy Mauro Marini, nascido em Barbacena, não iria considerar um deslize antidialético juntar Theodor Adorno e Luis da Câmara Cascudo com a teoria marxista da super exploração do trabalho. Claro que não é a produção sonora a causa da super exploração do trabalho, mas é um fator condicionante em sua reprodução cotidiana. A mais valia ideológica de Ludovico Silva é antes de tudo acústica: o ouvido do trabalhado está dentro e fora da fábrica.

O rádio e a televisão são inimigos do folclore e do socialismo. E a escola obrigatória também, segundo Pier Paolo Pasolini que elaborou uma linguística materialista com base na oralidade da tradição popular. Acusado de nostalgia do passado e de irracionalismo estético. Bobagem, ele dizia, é considerar a tradição popular como guardiã da propriedade privada. Tradição é região. Guilhermino Cesar, mineiro de Cataguazes, radicado em Porto Alegre, admirador de Cobra Norato de Raul Bopp, defendia a percepção do terrunho não raro em detrimento do universal.
Moscou é cidade camponesa portadora do antigo e do milênio, segundo Pasolini que radicalizou em As Cinzas de Gramsci a paixão marxista pela cultura oral que antecede a cultura letrada. Essas duas culturas são diversas mas não adversas. Quanto a isso, Glauber Rocha é o cineasta pasoliniano dos trópicos, para quem Villa Lobos retratou o desejo do povo na assimilação das vanguardas musicais.

Villa Lobos conversa em Natal, Rio Grande do Norte. Na parede da sala a fotografia com o dizer: “que boa testa para levar um cascudo”. Assinado: Villa Lobos. Conversa sobre a escrita e o falado: aquele fica menos retido na retentiva do povo do que este. Lembro Leonel Brizola que gostava que falassem dele mais do que escrevessem sobre ele. Depois do provérbio vem a fábula e, em seguida, o mito. Os homens são governados pelas palavras: nunca existiu político mudo.

O que me comoveu no artigo de Lindberg Campos Filho é que não me considerou um abiscoitado. Bela época de minha vida foi a juvenília na USP de 68 a 78. Minha birra com a USP não é vivencial, é política. O desenvolvimento desigual do capitalismo paulistrocêntrico contribui para a exploração imperialista no Brasil, tal qual acontece com Buenos Aires, conforme informou Juan José Hernández Arregui.

Repara Lindberg Campos Filho que o sujeito da história desapareceu: leia-se o sujeito genérico da história, então há uma crise da práxis. E eu nela estou incluído: “não me parece ser coerente ter uma régua tão dura para ususpianos e paulistas em geral, ao mesmo tempo em que se abraça o projeto intelectual de Adorno transformando em ideologia da resignação”. Quietismo. Não sei se originalmente o “projeto” de Adorno tivesse sido resignado, o hotel burguês de 5 estrelas segundo Lukács. De mãos dadas com Greta contemplando o mundo como um abismo, sem querer transformar o mundo, ou se sou eu um conformista pequeno burguês avesso à revolução proletária. Um bundão que não se opõe ao mundo tal qual é.

É mister separar os alhos dos bugalhos e não baralhar as asas com as patas. Sou paulista, minha mãe nasceu no interior de São Paulo, e está enterrada em Santa Adélia. Destarte, as duas grandes figuras intelectuais que marcaram minha vida foram Monteiro Lobato e Oswald de Andrade. No jornalismo foi Claudio Abramo que não gostava de Mario de Andrade.

Exilado nos EUA Theodor Adorno escreveu A Dialética do Iluminismo e anteviu o Curriculum Lattes, o positivismo norte americano que substituiu o “conceito” por “fórmula” no triunfo da “mentalidade factual”. O número é o “cânone do iluminismo”. Tudo o que não é quantificado é ilusão e mentira. O petucanismo pode ser visto como um neo positivismo pegando o sabonete para Rockfeller.

O que há de divergência entre o folclore e o marxismo já sabemos, o lance é saber o que há de comum entre uma coisa e outra. O ponto de partida é a superstição, que não se confunde com a religião. A presença da superstição é maior do que a religião na cultura popular. Marx, Engels, Trotsky e Lênin abominaram a superstição e viram o místico identificado com o irrealismo reacionário. Na cultura brasileira não foram poucos os artistas que se valeram do acervo supersticioso. Há beleza linguística na voz supersticiosa do povo mais que nos credos religiosos para não dizer nas teses acadêmicas. Será que não haveria um componente socialista na acústica supersticiosa do povo?

A igreja de Edir Macedo tem uma atitude cínica e oportunista em relação à superstição. Ela é refratária à magia, aliás a igreja católica também é hostil à mentalidade supersticiosa. Por que a religião é hostil à superstição? Luis da Câmara Cascudo informou que as superstições são construídas com resíduos religiosos, embora não se confundam com a religião. A semântica da palavra superstição é “supersticium”, em latim significa aquilo que sobrevive.  Ora, aquilo que sobrevive na experiência popular não pode ser revolucionário?

Pergunto: por que a reflexão marxista não atina para a superstição como um potencial socialista no povo? Não acredito que a presença da superstição, ou o modo pelo qual ela entra na cabeça do povo se deva à fé e ao batismo nas igrejas. Não é simplesmente por meio da fé que o homem do povo é supersticioso.

Edison Carneiro, autor de Candomblés da Bahia, estudou o feminismo na Bahia, assim como a pioneira insurgência intelectual feminista nasceu com o folclore no Rio Grande do Norte. Não chego a ponto de dizer que Luis da Câmara Cascudo escreve com estilo feminino e inteligente. Certa feita Glauber Rocha chamou Frederico Fellini de cineasta mulher.

Edison Carneiro tal qual Nina Rodrigues, que é o pai dos estudos africanos no Brasil, achava que o negro não tinha desafricanizado em suas crenças religiosas. A África do outro lado do atlântico. Nisso difere de Luis da Câmara Cascudo, para quem o negro africano se tornou negro brasileiro. O devoto do Candomblé espera e quer que as divindades sejam recebidas por ele, dai o santo que baixa, a baixada do santo ou o cavalo do santo. A possessão do espírito desce com o mensageiro Exu, elemento crucial no Candomblé, macumba e Umbanda.

As religiões no Brasil, catolicismo, budismo e espiritismo estão tentando sempre apropriar-se dos cultos populares baseados na possessão. O copo d’água no espiritismo, os guias, os irmãos do espaço, os banhos de descarga, o exu abrindo garrafa de cachaça, as caixas de fósforos, os ebós e despachos em encruzilhadas, tudo isso fundamentado na existência da superstição, Exu tranca rua, Exu caveira. A pomba gira é o equivalente feminino de Exu.

As igrejas evangélicas são chupins que vampirizam os cultos populares.

Para o homem do povo brasileiro o céu não é moldado por aquilo que o padre ou pastor prega. O que é o céu para o homem do povo? Trata-se de um céu supersticioso que não difere das frases feitas sobre a morte que no Brasil não baila. A internet ainda não deu outro céu para o povo. Imagine um partido político revolucionário que tivesse por incumbência suprimir a superstição do povo, uma didática que eliminasse pouco a pouco essa maneira do povo pensar. Impossível. Seria um partido fadado ao fracasso. Se tivesse mais escola, se tivesse mais gente alfabetizada, a mentalidade supersticiosa iria desaparecer? Quanto maior o nível cultural menor é a superstição? Luís da Câmara Cascudo responderia: não.

Folclore, marxismo e feminismo. Para onde me levas, Cascudo? Livro publicado em 1947 nos EUA, A Cidade das Mulheres, no Brasil veio a lume em 1967. De autoria da antropóloga Ruth Landes, livro essencial para atacar a hegemonia evangélica do governo Bolsonazi que é inimigo do Candomblé e das crenças afro-brasileiras. Ruth Landes sublinha o poder das mulheres no Candomblé de Salvador, e também dos pais de santo homossexuais, objeto de ódio e perseguição da milícia bolsonara.

A antropóloga Ruth Landes e o etnólogo Edison Carneiro namoraram e fizeram do Candomblé um colóquio com babalorixás e mães de santo marxistas, mas isso não quer dizer que tivesse ocorrido a convergência do marxismo com o folclore na década de 30. Edison Carneiro escreveu A Dinâmica do Folclore a fim de mostrar que o folclore poderia ser um instrumento de emancipação popular. A presença feminina no Candomblé deveria ser motivo de reflexão das mulheres marxistas, tendo em mira a opressão machista da Igreja Universal Reino de Deus que seduz muitas mulheres idiotizadas.

Há que se realçar que a contradição é menos entre Igreja evangélica e Igreja católica do que entre evangélicos e umbandistas, não obstante as afinidades destes com o catolicismo, conforme mostrou Roger Bastide na década de 60. Roger Bastide juntou Freud com folclore ao escrever a psicanálise do cafuné, mas deixou Karl Marx de lado. Florestan Fernandes começou pelo folclore do bairro do Bom Retiro, mas o abandonou quando abraçou a teoria do desenvolvimento.

O folclore deve ser visto como um desafio colocado pela luta de classes na história, de modo que hoje não seria disparate conceber uma frente folkmarxista de mulheres e homossexuais oprimidos contra a repressão sexual bolsonara.

Ainda não foi explicada a fascinação popular que tem exercido a Igreja evangélica, que não é cura terapêutica, religião, teologia, a não ser auto-ajuda mistificadora. Eis a questão que ainda não foi esclarecida: qual é a psicologia do devoto evangélico? Não se conhece ex-renegado que abra o jogo acerca da sedução evangélica, ou dos motivos pelos quais alguém entra na seita tal ou qual.
Ao contrário do Candomblé com sacerdotisas, mães de santo e Adés (sacerdotisas não raro homossexuais), nas igrejas evangélicas as poucas pastoras são personalidades fálico-argentárias.

Um pastor não se confunde com um babalorixá porque este no Candomblé é um intermediário dos deuses ou o seu cavalo. No mundo evangélico não há santo. O pastor evangélico é a reprodução do dinheiro e este é amado como um deus. Basta olhar as mãos do pastor. Dinheiro, dinheiro, dinheiro.

Por que o povo pobre está preferindo os evangélicos aos Orixás?

O dinheiro na mesa da Umbanda não se destaca como o crédito e o débito dos pentecostais. O pauperismo da sociedade brasileira predispõe o interesse pelo dinheiro vivo aos orixás mortos do Candomblé.

As Igrejas evangélicas são carentes de rituais e cerimoniais. Ausência do tambor. Fernando Ortiz em Cuba dizia que o povo aceita santos milagrosos, mas não um Cristo morrendo na cruz. Em seu último filme A Idade da Terra Glauber Rocha mostrou que o gringo do FMI tem medo é de Cristo fora da cruz.

As igrejas evangélicas não toleram a existência da superstição. Depois de eleito Jair Bolsonaro foi ungido por Edir Macedo que tem horror das crendices populares, macumba, candomblé, umbanda, incitando a violência contra os umbandistas nos morros do Rio de Janeiro.

Na filosofia racionalista a superstição é encarada como se fosse o ópio do povo. Por outro lado, a mentalidade popular é contra a racionalização da Fé. Deus não pode ser explicado. Luis da Câmara Cascudo oferece uma explicação racional da superstição. A superstição submetida à análise científica. Lendo seu livro Tradição Ciência do Povo basta substituir o vocábulo “tradição” por superstição: a ciência da superstição. A superstição é o continuum do tempo sem tempo.

E a superstição no tocante à indústria cultural? A indústria cultural é indissociável do fascismo. Observo que as telenovelas não conseguem retratar a superstição. O capitalismo monopolista e os seus agentes ideológicos, incluindo os aparatos religiosos, almejam solapar a permanência das superstições. A Igreja Universal Reino de Deus tem como adversário, não o Vaticano, e sim a crendice popular. Edir Macedo odeia o Saci Pererê e não o Papa Francisco.

A investigação cascudiana releva o universalismo no regionalismo, buscando o que há de universal na região e a importância da oralidade na superstição. A abordagem linguística da superstição, das frases feitas, da maneira do povo falar, a linguagem errada do povo, dizia Manuel Bandeira. Que está em Oswald de Andrade, em Gregório de Matos, em José de Alencar, que está em Glauber Rocha, em Guimarães Rosa e em Jose Lins do Rego. 

A oralidade popular está eivada de crendices e superstições. A Igreja Universal Reino de Deus não tolera a expressividade oral do povo brasileiro.
O Dicionário Houaiss é superficial ao definir a superstição como confiança em coisas absurdas. Ora, a superstição na vida cotidiana é funcional, não tem nada de absurdo A Igreja Católica desde Tomás de Aquino é contrária à superstição.
Então onde haveremos de buscar elementos para fazer a revisão crítica, apontando que a superstição pode ser progressista e liberadora do povo brasileiro?

A visão racionalista sobre a superstição é contrária à frase de Luis da Câmara Cascudo, segundo a qual “não há momento na história do mundo sem a inevitável presença da superstição”.

O Brasil possui um Dicionário do Folclore Brasileiro: língua, visão de mundo, usos e costumes. Afinal, o marxismo como ciência da revolução nada tem a ver com o folclore como ciência do povo?

A superstição portuguesa não retardou a epopeia navegadora. A superstição não é necessariamente a ideologia da classe dominante. Por que não haverá uma humanidade livre do capital e norteada por um folclore revolucionário? Não digo mais nada e nem me foi perguntado.



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