segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Karl Marx, Gunder Frank, Walter da Silveira e Eu, o Jamesjoça


Fui chamado pelo saudoso mineiro Jarbas Medeiros de Giubther Felizbax Waskoncèllouz para afugentar o baixo-astral da minha vida. Agradou-me uma diatribe fonemática. De súbito virei húngaro e sobrinho compositor Béla Bartók, ainda que nasceu filho de Adelaide e Zolachio no interior de São Paulo.

O paulista branco, negro, mulato, não se liga na sorte dos brasileiros pobres de outras regiões. Estes, quando apaulistados, odeiam aqueles irmãos que estão vindo disputando o lugar dos velhos baianos. Que se dane o seringueiro pobre diabo de que falava Mário de Andrade. O separatismo do homem paulista não é apenas um sentimento da burguesia ilustrada que não curte Marçal Pablo.

O paulista rico e também o pobre paulista unidos pelo mesmo preconceito sobre o atraso do país. A mesma coisa ocorre com os brancos pobres em relação aos negros das regiões escravistas nos EUA. É surpreendente, mas não inexplicável, que intelectuais de alto nível como Monteiro Lobato e Mário de Andrade tenham feito parte de São Paulo da história do Brasil.

Essa esquizofrenia dualista do intelectual paulista, segundo Gunder Frank, originou-se da mistificação do café que teria gerado exclusivamente a indústria de São Paulo. A acumulação de São Paulo para São Paulo, uma região propensa ao influxo de capital estrangeiro como dinamo do progresso. O progresso do Planalto de Piratininga se converterá em subimperialismo na América Latina, disse a historiadora e amiga de João Goulart em Montevidéu, Vivian Trías.

Gunder Frank viveu no Rio de Janeiro em 1963, por coincidência o ano em que foi publicado o ensaio de Glauber Rocha Revisão Crítica do Cinema Brasileiro focalizando a questão cultural de São Paulo, análise semelhante à de Gunder Frank sobre a tesão cosmopolita. Não tenho informação se o cineasta não teria lido o autor de Desenvolvimento do Subdesenvolvimento, livro hegeliano marxista que inaugura uma linha de pensamento dialético na América Latina.

As ciências sociais em São Paulo se deram bem com o imperialismo norte-americano no poder em 1964.

O crítico baiano Walter da Silveira alertou Glauber Rocha que, depois de publicar A Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, ele estaria proibido de pôr os pés em São Paulo.

Ao escrever sobre São Paulo e seus intelectuais, Gunder Frank leu Marx e Engels sobre a questão nacional da Irlanda, a primeira colônia moderna da Inglaterra cujo modelo é reproduzido em todas as colônias.

Karl Marx viu o proletariado mundial a partir da relação entre o proletário irlandês e o proletário inglês. A tarefa mais importante da associação internacional dos trabalhadores seria acelerar a revolução social na Inglaterra, e para atingir tal fim, tornar a Irlanda independente e emancipada. A classe operária inglesa tinha por imperativo histórico tomar consciência da situação nacional da Irlanda.

O operário irlandês, assolado pela fome e pelo pauperismo, vai trabalhar nas indústrias da Inglaterra, onde é hostilizado pelo operário inglês que o vê como concorrente que faz baixar os seus novatos.

Meteco filho da puta!

A burguesia inglesa se aproveita do antagonismo entre o operário inglês e o operário irlandês. Isto é visto com preconceito social, cultural e religioso. Engels perguntou o que era o irlandês sublinhando o seu caráter primitivo, semisselvagem, cheio de fúria, verdadeiro sans-culotte, sem esquecer que suas duas amantes, Mary e Lizzy Burns, revolucionárias e irmãs entre si, foram irlandesas.

Os pobres na Inglaterra são os irlandeses odiados por tirarem os empregos dos ingleses.

Oscar Wilde, irlandês da mais fina elite (filho de médico e mãe escritora), viajou para Oxford e teve que falar o inglês impecável, sem nenhum sotaque estrangeiro. A opressão inglesa é um assunto abordado por todos os grandes escritores irlandeses, ainda que não tenha sido influenciado pelos escritos de Marx e Engels sobre a Irlanda moderna, Oscar Wilde, James Joyce, Yeats, Bernard Shaw, Samuel Becket.

O irlandês trabalhou para se tornar pobre, bêbado, tarado, sujo. Não é diferente do proleta brasileiro enriquecendo o bolso do Musk & Trump.

Marx e Engels batalharam para que houvesse a aliança entre a classe oprimida da Irlanda e a classe oprimida da Inglaterra.

A questão nacional irlandesa não é âmago da história do marxismo, inclusive na América Latina colonizada, dependente e subdesenvolvida.


A Internacional Reacionária


A direita vai tomar conta do mundo, a passos largos. Fato irrefutável. Precisamos saber os motivos disso. Como a direita vai vencer, e pelo voto popular. Como? É uma psicose? Comentário de Gilberto Felisberto Vasconcellos, no Programa Campo de Peixe, da Rádio Comunitária Campeche. (16.11.2024)

Foto: (crédito: Caio Gomez)

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O Trump é a treva


O Vagabundo é uma trapaça, uma treva. O outro lado também era. Mas, a se falar em espetáculo, o Trump é a vitória da direita e coloca na pauta o calhambeque elétrico de Musk. Comentário de Gilberto Felisberto Vasconcellos, no Programa Campo de Peixe, da Rádio Comunitária Campeche (11.9.2024).

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terça-feira, 12 de novembro de 2024

O golpe de 64, o fio da história brizolista e a dialética da continuidade

O historiador brasileiro Nelson Werneck Sodré


Surgida em 1945 nos EUA a corporação multinacional abocanha o lucro exportável em escala mundial. Depois de 1974 converteu-se em agente da democracia e dos direitos humanos, é propulsora das “perdas internacionais”, expressão de Leonel Brizola que ficou desacreditada nos meios liberais e acadêmicos em 1989 com a vitória eleitoral de Fernando Collor.

O PDT de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, partido formado principalmente por uma pequena burguesia descolarizada, não conseguiu ou foi impedido de se comunicar com o proletariado concentrado em São Paulo.

Não podemos creditar tão somente à astúcia maquiavélica do general Golbery do Couto e Silva, ao porta-voz da geopolítica imperialista, ao corte esquizofrênico da força de trabalho entre Rio de Janeiro e São Paulo. O que na verdade separou Brizola e Lula na década de 80 foi consequência do golpe de 64 que aprofundou o desenvolvimento regional desigualitario.

Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil do governo João Goulart, na década de 80 disse que o golpe de 64 foi o nosso Vietnã, só que guerra sem guerra, isto é, sem derramar sangue. Essa frase de Darcy Ribeiro, que às vezes se sentia preocupado por ter perdido o poder para transformar o país, nada tinha de diatribe. Que não seja, por outro modo, levado na galhofa a maldade do governo Jair Bolsonaro em comemorar, primeiro nos quartéis depois nas ruas e praças públicas, a “revolução de 64” como um acontecimento benfazejo para o povo e para o país.

O jornalista Cláudio Abramo, que já esteve rico nos dois maiores jornais de São Paulo, tinha por hábito perguntar a todas as pessoas que lhe foram apresentadas: – O que você acha do golpe de 64?

Isso para mim era tão esdrúxulo quanto se fosse provocação de intelectual marxista. Hoje vejo a pergunta como uma radiografia lúcida da nossa enfermidade. A mesma coisa aconteceu no cinema com Glauber Rocha, que foi entrevistado pela socióloga Rachel Gerber e formulou a seguinte retrospectiva de sua obra:

Quando fiz Deus e o Diabo na Terra do Sol desabou em mim um golpe. Porquê? Quem me aconteceu? Eu quero saber quem são esses fantasmas todos que me armaram essa jogada desde a época em que Getúlio se matou. Eu não aceito as versões do Cebrap, dos brasilianistas, acho que essas versões são semelhantes. Eu quero a versão mítica, eu quero saber exatamente por que o sangue do Getúlio correu, por que Getúlio escreveu aquela carta, o significado desse sangue como fecundador da alma brasileira. – Qual seria a relação da tragédia com Villa Lobos, o projeto do desejo do som, alguma coisa que o imperialismo matou? (GERBER, 1982).

O “fio da história” de que Leonel Brizola falou frequentemente em seus quadrinhos na Cinelândia repercutiu na metáfora glauberiana, enquanto Leonel Brizola estaria destinado ao poder por “razões místicas” no desfecho da “tragédia getulista”.

O tiro no coração de Vargas não foi diferente da derrubada do presidente João Goulart pelo imperialismo e seus coadjuvantes a exemplo da FIESP e da Igreja católica, sem deixar de aludir aos grandes jornais cujos donos odiavam o trabalhismo.

O primeiro livro escrito sobre o golpe de 64 é do trotskista Edmundo Muniz, o historiador de Canudos; o primeiro artigo que tematiza a estrutura de classe de 64 é de Gunder Frank, que aborda a história como traço essencial do marxismo. Edmundo Muniz situa o golpe de 64 como um capítulo da expansão imperialista sedada em São Paulo em seu papel subimperialista na América Latina. Gunder Frank participou da convergência da burguesia comercial carioca, cujo representante foi Carlos Lacerda, com a burguesia bandeirante da Fiesp.

De Minas Gerais o banco de Magalhães Pinto opera como coadjuvante na constelação golpista regional. O historiador Nelson Werneck Sodré, que atuou na ala de esquerda do ISEB junto com o filósofo Álvaro Vianna Pinto, nunca deixou de se referir em todos os seus livros ao golpe de Estado, principalmente no que diz respeito ao papel das Forças Armadas, associando- o à guerra do Paraguai.

A vanguarda da direita é uma multinacional paulista, que atua cada vez mais como agente do capital estrangeiro, embora não sejam paulistas ou paulistanos os respectivos presidentes da república. O maranhense Franklin de Oliveira, casado com mulher gaúcha, em um livro premonitório de 1961, prefaciado pelo então governador Leonel Brizola, Rio Grande do Sul O Novo Nordeste, foi inspirado na metodologia do capital monopolista de Paul Sweezy e Paul Baran.

Glauber Rocha foi o historiador do período João Goulart com o seu ensaio inédito Jangarana e o seu dramaturgo com a peça de teatro intitulada Jango uma Tragédia. Aproveito o ensinamento para registrar que Jangarana está sob censura até hoje, por isso não é publicado. Há 20 anos no Templo Glauber, rua Sorocaba, Rio de Janeiro, encontrei algumas páginas desse Jangarana, que é um elogio rasgado ao presidente da república e a tentativa de mostrar por que houve um complô da intelectualidade brasileira contra Jango. O personagem mais significativo e dramático da história recente do país. Drama de recepção marxista, segundo György Lukács, é o conflito entre o indivíduo e o destino que é o tema essencial do teatro clássico e moderno.

A palavra “místico” ou “mística” nem sempre tem a ver com idealismo religioso.

Atente-se que no pensamento glauberiano a história do Brasil, depois do cinema falado em 1930 e sobretudo depois de 1945, está condicionado cada vez mais à comunicação de massa que reverbera a luta de classes, ou seja, a contradição povo e imperialismo.

De olho nos gestos e na roupa dos militares brasileiros golpistas, verifica-se a partir de 1965 a influência do cinema roliudiano que, um ano após o golpe, promoveu a empresa Globo a fim de legitimar a ditadura. A novela há meio século não produz publicamente o esquecimento de 1964. A televisão tem sido o principal cabo eleitoral das eleições. As cabeças cortadas pelo golpe não são curtidas pelas historietas telenovelizadas. Outros são os heróis.

O ano de 1989, do ponto de vista do resultado eleitoral, revela a permanência da ditadura. Fernando Collor é eleito. Lula em segundo lugar. Brizola em terceiro, o único candidato pré-televisivo. A televisão faz a política em um país analfabeto. Daí em diante a TV vence todas as eleições. Jair Bolsonaro abre o jogo numa entrevista: a TV Globo é sua aliada natural, porque ambos apoiaram o golpe de 64 que foi a favor do capital estrangeiro e das privatizações. Não por acaso o neto de Roberto Campos dirige o Banco Central, o ministro Paulo Guedes foi o garoto protegido da TV Globo.

O golpe de 64 continua em seus efeitos até hoje na chamada democracia promovida pelo doutor Ulisses que odiava João Goulart e Leonel Brizola. O que nos vem à mente são as lideranças políticas e intelectuais que sobreviveram à ação repressiva do golpe. São as lideranças do trabalho: João Goulart, Darcy Ribeiro e Leonel Brizola, todos mortos. A propósito de 1964 fala-se em golpe militar, mas é preciso lembrar que teve intensa e participação civil participativa, a exemplo dos empresários de São Paulo. Não é por acaso que a partir de 1964 São Paulo – dentre todos os Estados – foi o mais favorecido pela política econômica da ditadura.

Nas eleições de 1989, a primeira eleição presidencial depois de 1964, Leonel Brizola ficou no sétimo lugar, atingindo apenas 1,51% dos votos. A herança trabalhista pré-64 não ressurgiu, embora Leonel Brizola tenha sido no âmago da história. Já foi ventilada a hipótese de que o impiti de Fernando Collor, o que não deixa de ter algo nebuloso e enigmático, se deveu em grande parte à possibilidade de vir a se aproximar de Leonel Brizola, abordar um Collor em transe que poderia, evocando o seu avô ministro de Getúlio Vargas, Lindolfo Collor, bandear-se para o campo progressista, caso ficou seduzido pela proposta educacional dos CIEP'S concebida por Darcy Ribeiro. Debalde isso não aconteceu. Collor se corrompeu pelo último modelo automobilístico.

Não é também de todo prever a conjectura de que Lula teria cumprido sua missão histórica ao derrotar o trabalhista de origem getulista em perfeita convergência com o propósito feagaceano de ser o coveiro da era Vargas. É por isso que numa análise do primeiro governo Lula é fundamental levar em conta o que Leonel Brizola formulou a respeito em seus Tijolaços publicados na imprensa atacando a “pseudoreforma da previdência” e as suas revelações com o “neopetista” José Sarney. Condescendente com os graúdos e poderosos, Lula teria se esmerado em castigar os pequenos e a classe média trabalhadora, o que revelava uma atitude inibida e paralisante diante do patronato, meus representantes não estariam apenas fora, mas sim dentro do PT. Fato é que, segundo Brizola, o espectro da tibieza rondou o presidente Lula e seu governo. Apraxia, além.

A tônica da análise brizolista incidiu na fraqueza do Presidente. Convém aqui abrir um parênteses para fazer um cotejo, ainda que ressaltando as enormes diferenças com o governo João Goulart, o que foi analisado por Leonel Brizola à altura de 1962 pelo ângulo de um presidente que só tinha nominalmente o poder com a sua política de conciliação , acometido de perplexidades e de vacilações, obrigado a negociar com as forças políticas que o derrubariam, embora tivesse tido duas vezes a oportunidade do poder pleno em suas mãos com o movimento da legalidade e o plebiscito.

Não é minha intenção sugerir que haja qualquer tipo de semelhança psicológica entre Jango e Lula, nem tampouco comparar as reformas de base, agrária e distribuição de lucros, com fome zero. O que merece reparo é que Leonel Brizola estava familiarizado com as fraquezas das lideranças políticas, e no caso de Lula no poder apontou-lhe um complexo de inferioridade diante do patronato nacional e transnacional, além do medo de enfrentar a televisão dominante. Houve uma mistificação icônica do operário de carne e osso, a respeito do qual não faria sentido colocar a distinção dialética da classe em si e da classe para si. O curioso é que esse fetichismo acompanhou uma “teoria” do populismo feita na USP. A origem social humilde do presidente fará parte do credo espelhado pela Igreja a fim de se opor ao trabalho laico de Leonel Brizola e de seu programa educacional baseado em Anísio Teixeira. Na década de 70 Glauber Rocha, que se autointitulava o “último janguista”, anunciou que a igreja deu sinal verde para o golpe de 64 em meio à paranóia do anticomunismo. Nesse balaio golpista entraram CIA, embaixada norte-americana, burguesia, latifúndio e setores subculturais da classe média. Ainda não saímos até hoje deste quiasma.

Bibliografia

FRANK, André Gunder. O Desenvolvimento do Subdesenvolvimento. DOI: https://doi.org/10.14452/MR-018-04-1966-08_3.

GERBER, Raquel. O mito da civilização Atlântica – Glauber Rocha, Cinema, Política e a Estética do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1982.

Lukács, György. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades, s/d.

RIBEIRO, Darcy. Tempos de Turbilhão: Relatos do Golpe de 64. São Paulo. Globais, 2014.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Onde você quer chegar?


 Quando eu era estudante na USP a pergunta infalível era: onde você quer chegar com os teus textos? Não sei. Nunca soube. Uns dizem que sou marxista, outros, culturalista. Escrevo. Meus primeiros livros já falavam de fetichismo da mercadoria, então tenho um pé no marxismo. Mas, em alguns deles, errei. Como no "De olho na fresta", no qual falava da música brasileira. Errei feio. Comentário de Gilberto Felisberto Vasconcellos no Programa Campo de Peixe, da Rádio Comunitária Campeche. (26.10.2014)


A hora e a vez da Venezuela plantada com biomassa


 

O físico e engenheiro José Walter Bautista Vidal. Foto: Milca Santos

Nicolás Maduro, não por acaso escolhido por Hugo Chávez para ser o seu sucessor, hijo espiritual de Bolívar e Martí, é alvo de ataques imperialistas por causa do petróleo. A capacidade de resistência do povo venezuelano lembra a do Vietnã.

Em meados dos anos 80, Brasília, Bautista Vidal entrou em contato com o ministro da energia da Venezuela. Assunto: a produção de dendê a fim de pouco a pouco ir substituindo o petróleo. O dendê da Amazônia poderia produzir mais energia do que o petróleo da Arábia Saudita.

O detalhe da natureza privilegiada da Venezuela é estar verticalmente debaixo do sol dos trópicos. Empolgado, telefonou-me dizendo que o nosso livro “Poder dos Trópicos” iria ser traduzido para o espanhol. Vamos fazer agora um prefácio venezuelano. O livro, não sei lá o motivo acabou não saindo, mas o prefácio foi escrito em 2004, o qual agora a jornalista e editora Elaine Tavares dará ao público ledor.

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Prefácio

Este livro à disposição dos leitores da Venezuela acreditamos que sirva à necessária transição energética na América Latina: do fóssil à biomassa vegetal. Há muito sabemos que o petróleo não estendeu o progresso à maioria do povo venezuelano.

Recordemos as palavras de um dos grandes escritores da Venezuela, Ludovico Silva, marxista, poeta, filósofo, que conhecia as entranhas de sua pátria. Escreveu em 1986, pouco antes de morrer, em seu magnífico Filosofia de la Ociosidad, discorrendo sobre o inferno de Dante Alighieri e Arthur Rimbaud: “Quanto a nós, nesta pequena província do reino de Deus temos, para nos entreter e contrair dívidas, o excremento do diabo, ou seja, o petróleo”.

O verdadeiro poder dos trópicos não é o petróleo poluente e finito e sim a eterna energia da biomassa. O petróleo venezuelano terá um destino socialmente emancipador se for utilizado para produzir simultaneamente energia e comida com os vegetais em pequenas propriedades. Esse é o binômio revolucionário da biomassa: energia e comida plantadas ao mesmo tempo, criando milhares de empregos no campo e desinchando as megalópoles.

A Venezuela saindo do petróleo poderá deixar de ser “a vitrine ianque”, como denominou Darcy Ribeiro em seu livro de 1977, As Américas e a Civilização. É o que se descortina com a perspectiva de uma agricultura produtora de comida e energia, empregando a população, ocupando o próprio território e resolvendo o problema do inchaço de Caracas.

O assunto deste livro é a alienação energética que nos torna alheios ao espaço e ao tempo, desconectados da geografia dos trópicos. Os autores somos brasileiros, vivemos na maior nação tropical do planeta e, até hoje não conseguimos nos desenredar da alienação energética que traz tanto sofrimento e humilhação do povo.

O imperialismo, com a sua ideologia difundida pelas universidades e meios de comunicação, primeiro quis nos convencer que em nosso subsolo não havia sequer uma gota de petróleo, atualmente nos quer atrelados ao petróleo.

O objetivo da rapinância imperialista neste século XXI não é senão apossar-se do território dos trópicos com grandes plantations de biomassa. Assim, o eixo geoenergético mundial transladar-se-á do Oriente Médio para as florestas úmidas da América do Sul.

A verdade histórica é que chegou a hora e a vez dos trópicos. Para o bem se a energia da biomassa for utilizada a favor do povo; para o mal se estiver sob o controle das multinacionais e do capital estrangeiro.

Situada no trópico, a Venezuela é privilegiada do ponto de vista da energia futura, se porventura valer-se do hidrato de carbono para construir a civilização da fotossíntese. Num país em que a industrialização neocolonizadora e a modernização reflexa foram movidas com petróleo, é compreensível que este assuma um caráter fantasmagórico.

Ancorado no dólar e no petróleo, o poder imperialista almeja manter o seu domínio com invasões e guerras. Saddam Hussein do Iraque foi derrubado porque atreveu-se a romper o vínculo dólar-petróleo. A mesma coisa talvez poderá suceder com o Irã.

Uma OPEP verde na América do Sul sem dúvida pode ser um alívio às tensões internacionais com a substituição dos combustíveis fósseis pelos derivados da energia da biomassa. É o autodesenvolvimento, o “desenvolvimento endógeno” no dizer do comandante Hugo Chávez.

Marcelo Guimarães Mello, geólogo e entendido em florestas tropicais, quando soube que o livro Poder dos Trópicos iria ganhar edição venezuelana nos encarregou de transmitir um recado para Hugo Chávez. É que a Venezuela, invés de exportar seu gás in natura, deveria fazer dele adubo para exportação, uma vez que a agricultura no mundo inteiro depende dos fertilizantes nitrogenados.

A Venezuela não pode prescindir de sua floresta para produzir a energia de maneira múltipla, inclusive a elétrica. Se empreendida numa moldura nacional e popular, a transição energética do fóssil para o vegetal significará a experiência pioneira e revolucionária na história da humanidade, ou seja, a Venezuela dará o salto evolutivo da petroquímica à alcoolquímica.

Bautista Vidal e Gilberto Felisberto Vasconcellos

Brasília – Juiz de Fora – Petrópolis, 7 de junho de 2006.


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