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Marxizar Cascudo e cascudizar Marx |
Do meu amigo Vicente Serejo vem por telefone o amável convite e, ao mesmo tempo, intelectualmente espinhoso, para evocar o último gênio a visitar Luis da Câmara Cascudo no assombroso livro "Prelúdio e Fuga do Real".
Na casa da rua Junqueira Aires subindo as escadas o convidado é anunciado pela empregada:
– Seu Cascudo, tem aí um homem barbudo, gordo, falando uma fala que não é daqui.
Já entrando, cordial e bem educado, mas sem o cerimonial burguês. Era Karl Marx, o autor de O Manifesto do Partido Comunista.
– Frederico Engels não veio?
– Não - respondeu Marx - Ele está cuidando da edição do segundo volume de O Capital.
O diálogo interpessoal desfaz o mal entendido epistemológico. Marx considera Cascudo o intelectual socializado no amor pelo povo.
Quem teria amado o povo tanto assim?
O socialismo do povo está em você, don Luis, amar e conhecer em profundidade, 150 volumes sobre a produção e a reprodução das gentes brasileiras.
É preciso dialetizar o tempo e o espaço, além do cotejo biográfico e das preferências subjetivas. O paradigma é Honoré de Balzac, revolucionário no romance e conservador em termos políticos.
– Você nunca me citou em seus livros. E teve do comunismo a deformação stalinista corrente na década de 30. Isso, no entanto é aparência, não a essência das coisas. Quanto à necessidade da ciência para distinguir a essência da aparência, você escreveu um tratado materialista com originalidade daqui de Natal.
Sentado na rede de dormir Karl Marx refere-se à ciência do povo extraída da tradição, que é o lugar culturalmente revolucionário em país colonizado.
Não há dissídio entre folclore e marxismo, a não ser no salão burguês, conforme evidenciou Edison Carneiro, pesquisando Umbanda nos terreiros de Salvador.
A oralidade folk antecede a erudição letrada. Na Itália o subversivo Pier Paolo Pasolini juntou no cinema épico o marxismo com a cultura popular. “Eu sou uma força do passado”, dizia ele. O novo Dante do folclore escreveu um longo poema sobre Antonio Gramsci.
Equívoco é identificar tradição (o que se transmite oralmente) com defesa da propriedade privada.
O historiador potiguar mostrou que o dia a dia supersticioso do povo gira em torno da força de trabalho, a qual não deveria ser sacrificada à acumulação de capital. Resulta daí a expressão lúdica, o homo ludens na cultura popular, que se traduz pela predominância do valor de uso, digamos, a economia política do solidarismo. No regime socialista o mutirão é uma espécie de adjutório sem os donos dos meios de produção.
O trabalho é meio de vida, não de morte. Essa frase está em um dos livros do mestre que corrigiu o aforismo nababo de Lombard Street: time is money, mas – atenção – dinheiro não é tempo.
Absolutamente não importa que não houvesse operário e fábrica na Natal plebeia de Fabião das Queimadas.
O filósofo Epicuro era comunista na Grécia, segundo tese de doutorado de Karl Marx. A educação do desejo. Os sentidos se educam.
O mundo é meu amigo, segundo o filósofo do jardim das delícias.
A filosofia da miséria é a miséria da filosofia recusada pelo folclore. Vale a frase de Luis da Câmara Cascudo: viva a fartura que a miséria ninguém atura.
Karl Marx tinha razão de visitar o Epicuro do Nordeste.
Marxizar Cascudo e cascudizar Marx, eis a diretriz revolucionária para o povo brasileiro.
Saravá.
Karl Marx desceu as escadas como subiu naquela tarde de verão.
Pena que sejam tão poucos com os quais podemos compartilhar as preciosidades dos pensares de Gilberto Felisberto.Um dia, o barco muda o rumo nem que seja por força da tempestade.
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