quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Bom dia, Gondin da Fonseca



Texto publicado na Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos

Amalucado bom dia no título deste artigo porque não está mais vivo aí o homem, no entanto cumprimento-o para saudar o grande escritor que foi malocado pela cultura chapa branca e vende-pátria. A começar das letras, das Faculdades de Letras chegadas a um intercâmbio free shop com as últimas novidades estrangeiras, muitas vezes comendo gato por lebre. Nenhum crítico literário universitário dedicou-lhe a mínima atenção. Outras estrelas menores foram badaladas e canonizadas. Seu estilo parece o que há de melhor em Oswald de Andrade, de quem foi amigo, o “bambino” Oswald que um dia no Rio de Janeiro com Gondin marcou um inusitado almoço contra. Almoço contra? Oswald respondeu: sim, almoço a favor tem demais.

Monteiro Lobato reconheceu que depois do livro sobre Santos Dumont o mundo ficou  sabendo que não foi o avião inventado pelos irmãos Wright. A metrópole costuma apropriar-se da história da colônia. Ainda bem que este livro existe. Santos Dumont, o primeiro a usar petróleo no espaço. Note-se que Gondin da Fonseca, amigo de João Pires do Rio, foi um intelectual antenado na questão energética, o que é raríssimo num país onde a intelectualidade está viciada na superestrutura. Não por acaso escreveu Que sabe você sobre Petróleo? Obra prima no século XX de metodologia anti-imperialista. Livro que deveria ser reeditado para reproduzir o sucesso e audiência pública que teve ao ser lançado. Linguagem coloquial, direta, apodítica, enxuta, irônica, polêmica, irada, panfletária, sem papas e batatas na língua.

Escrevia o que pensava e pensava com clareza.

Polígrafo mineiro, nascido em Matias Barbosa, autor de Angu, Feijão e Couve, Eduardo Frieiro dizia-o escritor clássico da língua portuguesa. Nunca deparei com o nome de Gondin da Fonseca em nenhuma história da literatura. Ele não era alérgico a São Paulo, adorava Ribeirão Preto, “a mãe-adotiva de Santos Dumont”, tinha enorme admiração pelo prefeito Prestes Maia, de que José Pires do Rio foi engenheiro e assessor.

José Pires do Rio pensou no papel do combustível na economia mundial em 1916, no mesmo ano em que Lenin conceituava o imperialismo a última etapa do capitalismo, que nasce movido pelo combustível fóssil na sua fase monopolista. Cotejo-o com Lenin porque, entre outras coisas, eu já li por aí apressado escriba a dizer que Gondin da Fonseca era antimarxista. Não é verdade. Ele era, sim, anti-stalinista; na década de 30 esteve na União Soviética e não foi lá muito bem recebido. Leu Marx, Lenin e Trotsky em uma cultura onde jejuamos marxismo.

Gondin da Fonseca não se comprazia em escrever para outros escritores. Não era cioso de sua especialidade e voltado exclusivamente para especialistas. Seu livro sobre petróleo teve milhões de exemplares. Anti-imperialista radical, difícil de ser encontrado entre autores marxistas no Brasil. Nisso é parecido com Leonel Brizola que não se nomeava marxista, mas era visceralmente anti-imperialista. Gondin da Fonseca elogiou várias vezes Getúlio Vargas,  não sei se esteve com ele no Catete. Sentou o sarrafo no entreguismo de JK, votou no Marechal Lott, denunciou as gorjetas da Standard Oil de Rockefeller, “o prêmio Nobel do banditismo”. Esse empresário gangster molhou as mãos de Carlos Lacerda, Amaral Peixoto, Julio Mesquita, Magalhães Pinto, Odílio Diniz e Cardeal Jaime Câmera. Curiosamente quase todos que tiveram as mãos molhadas por Rockefeller participaram do golpe de 64, para não dizer da derrubada de Getúlio Vargas em 1945 e 1954. Surpreendo-me até hoje que Gondin da Fonseca não tivesse sido assassinado por sua coragem cívica revolucionária.

Meu saudoso amigo, o cinematógrafo Elyseu Visconti, filho do pintor Cavalleiro, ilustrador de seus livros, autor de desenhos sobre Gilka Machado, deu-me de regalo a plaquete Arame Farpado.

Num país que adora biografia, Gondin da Fonseca foi sem dúvida o maior biógrafo. Cada biografia escrita com abordagem específica em função da vida do biografado. Eça de Queiroz, José Bonifácio, Camilo Castelo Branco, Santos Dumont, Machado de Assis e Camões. Traduziu o poeta Edgar Allan Poe.

Em seu livro magnífico sobre Camilo Castelo Branco, que não tem similar em Portugal, encontra-se de maneira pioneira a psicanálise freudiana aplicada à literatura. Aprendeu esse método com sua mulher Lourdes Leduc que escreveu sobre a psicologia do escritor Camilo Castelo Branco, considerado por Gondin o melhor escritor da língua portuguesa, o que não me parece exagero algum. Os psicanalistas brasileiros não conhecem Gondin da Fonseca nem sua mulher que leu a psicanálise em profundidade. Durante a moda do estruturalismo nenhum lacaniano por aqui disse nada a respeito. O prefácio do livro de Gondin sobre Camilo é de Lourdes Leduc, prefácio genial que revela à luz da psicanálise o drama de Camilo Castelo Branco.

Escândalo na sociologia é ele não ser lido. Claro que devemos creditar isso à ignorância, à desinformação típica do subdesenvolvimento. Reparem que Gondin da Fonseca refletiu sobre a questão agrária em seu livro Fala Julião, assim como tematizou o stalinismo em seu livro Bolchevismo escrito em 1935. Não sei de outro autor que tivesse morado uns tempos na União Soviética antes dele. Jornalismo de alto nível mostrando o cotidiano russo sob o regime de Stalin. Depois escreveu sobre Mao Tse Tung e a guerrilha nascida em Guararapes. Gondin da Fonseca não se dizia marxista, e sim espírita e crente em Deus.

Atenção: o rótulo abstrato da democracia não o seduziu. Não foi entusiasta do capitalismo e do liberalismo fundado no lucro. Definiu os EUA como um “acampamento dirigido por gangsters”. Sabia do que estava falando, tal qual San Martín que conheceu o monstro por dentro. Gondim da Fonseca morou nos Estados Unidos e trabalhou no banco  Morgan, viu de perto o mecanismo sórdido econômico das perdas internacionais que sacrificam o povo latino-americano.

Referências

FONSECA, Gondin. Bolchevismo. José Olympio; São Paulo, 1935.
FONSECA, Gondin. Camilo compreendido. Martins Fontes; Rio de Janeiro, 1954.
FONSECA, Gondin. Que sabe você sobre petróleo? São José; Rio de Janeiro, 1955.
FONSECA, Gondin. Arame farpado. Coelho Branco; Rio de Janeiro, 1955.
FONSECA, Gondin. Santos Dummont. São José; Rio de Janeiro, 1956.
FONSECA, Gondin. Camões e Miraguarda. Fulgor; São Paulo, 1961.
FONSECA, Gondin. Machado de Assis e o hipopótamo. Fulgor; São Paulo, 1961.
FONSECA, Gondin. Assim falou Julião. Fulgor; São Paulo, 1962.
FONSECA, Gondin. Afonso de Albuquerque e Mao Tsé Tung. Fulgor; São Paulo, 1963.
FONSECA, Gondin. A revolução Francesa e a vida de José Bonifácio. São José; Rio de
Janeiro, 1971.
FONSECA, Gondin. A tragédia de Eça de Queiroz. São José; Rio de Janeiro, 1972.
FONSECA, Gondin. Camões e os Lusíadas. São José, Rio de Janeiro, 1973.
FRIEIRO, Eduardo. Angu, Feijão e Couve. Itatiaia; Belo Horizonte, 1966.
VLADIMIR, Lenin. Imperialismo, etapa superior do capitalismo. Global; São Paulo, 1979

Nenhum comentário:

Postar um comentário