Quando os índios já estavam estropiados, muitos em processo de serem extintos, Oswald de Andrade sintetizou na antropofagia o que pensava do Brasil. Intitulou seu pensamento de antropofágico, apegando-se a esse batismo até morrer. Oswald de Andrade deu-lhe a acepção ritualística: ritual celebrado para se fortalecer com as virtudes do inimigo morto e derrotado. Quando o Brasil amanhecia entre os índios, não havia fome e, na verdade, a maior parte das tribos indígenas não tinha o hábito antropofágico. Isso não era algo sistêmico, mas Oswald de Andrade manejou a palavra antropofágica contra a evidência etnológica para realçar o exemplo de oposição, de resistência, designando com isso a atitude de não passividade do aborígene diante da invasão colonial. Existe como símbolo nessa escolha uma dupla referência: a fraqueza do homem catequizado e a denúncia psicológica sobre o câncer colonial, mais ou menos o que Glauber Rocha em meados da década de 60 fez com Lampião diante do homem fraco: “Se pedir perdão, eu mato.”
Equívoco de interpretação, tanto aqui quanto fora do Brasil, é identificar antropofagia com canibalismo. É um erro traduzir para o francês e inglês a palavra antropofagia por canibalismo. Darcy Ribeiro em A Utopia Selvagem esclareceu a semântica de canibalismo como uma armadilha colonialista, que não tem mais nada a ver com o texto de Montaigne, escrito a partir de seu encontro no século XVI com os três índios tupinambás na França. Montaigne foi lido por Oswald de Andrade na São Paulo da década de 20. Eis o que escreveu Darcy Ribeiro: “Quanto aos canibais, vamos devagar. A palavra vem da expressão Caribe, que era o nome gentílico dos pobres selvagens com que o descobridor topou em 1492 nas ilhas idílicas.” Este descobridor “andou difundindo rumores de que entre eles viveriam gentes de um olho só, com focinhos de cão, comedores de carne humana. Caribe vira Cariba, Caniba e Canibal.” É isso o que Montaigne viu em 1580, assim como Shakespeare em 1612. Canibal deu em calibã. Este “nosso avô se fode”, canibal, calibã, ao ganhar voz e civilização. Próspero o considera monstrengo, depois de roubar-lhe a ilha. Richard More não fez por aqui a revolução psíquica à Roger Bastide, paparicado pelas mães de santo no candomblé.
Em 1754 Ruçô de Genebra embarca na fama dos canibais, “proclama a bondade inata dos selvagens, funda nela a moderna pedagogia e a política científica”, segundo Darcy Ribeiro que cita Oswald de Andrade: o comunismo catiti. “Comemos com Oswald nosso repasto mais sério e severo da assunção do nosso ser, diante da estrangeirada”, sublinhou.
O legado marxista de Oswald de Andrade está na Antropologia das Civilizações de Darcy Ribeiro. Destarte, Oswald de Andrade iria aplaudir os Brizolões como a materialização pedagógica do matriarcado de Pindorama. A retomada estética de Oswald, feita durante a década de 60, desmarxixou a antropofagia. A verdade é que na visão antropofágica do mundo a dialética materialista é fundamental. Marx e Engels são citados tanto quanto Freud e Nietzsche.
E os estamentos e os executivos das multinacionais? Mas vamos ficar com a carne, com o cheiro, com o excremento do que é comido? Vamos por o FMI no tempero da nossa feijoada? O problema é que a boca banguela do povo mestiço não é a boca cheia de dentes dos índios Caetés que comeram o bispo Sardinha no século XVI. E então, vamos comer o FMI e o Banco Mundial resignando-se diante da dificuldade ou da impossibilidade de eliminá-los?
Revista Caros Amigos
Ano XIII número 145, abril de 2009
Página 10: “Gilberto Felisberto Vasconcellos mostra as armadilhas do colonialismo”
Compilação: Matheus Rosa
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