sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Do supermercado à farmácia, o drama dos nossos dias



Por elaine tavares

O livro “Nossa vida de cada dia entre o supermercado e a drogaria”, do professor e sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos é um trabalho perturbador e provocativo. Apresentando uma série de ensaios sobre a vida e as ideias do médico Antônio Silva Mello, que foi editor da Revista Brasileira de Medicina por 40 anos, Gilberto desvela os motivos pelos quais esse importante pensador brasileiro segue completamente esquecido, tanto nas Escolas de Medicina quanto no mundo intelectual.

Silva Mello foi um homem que pesquisou em profundidade a comida dos brasileiros. E já nos anos 50 ele denunciava a relação visceral que começava a se fortalecer entre o que se come e as doenças que são causadas por isso. Foi o primeiro a ver que havia um movimento pendular no ato de comer e ser, ao mesmo tempo, medicado por uma mesma produção econômica, política e cultural. Farejou com sagacidade que a produção capitalista de comida estava destinada a produzir doentes para alimentar a indústria farmacêutica. Era o início do que Gilberto chama de “gastrofarmacocolonialismo”.

Silva Mello nasceu em Minas, Juiz de Fora, em 1886, teve infância pobre, perdeu os pais bem cedo e muito jovem começou a trabalhar. Mas, foi por conta da ajuda de um cunhado que pode estudar e se formar em medicina em Berlim, Alemanha. Só que apesar de formado na Europa, Silva Mello nunca deixou que suas ideias fossem colonizadas, tanto que sua preocupação era sempre o povo brasileiro e os problemas locais. Dedicou sua vida para conhecer e compreender a totalidade da civilização brasileira. Clinicava no Rio de Janeiro e lá viveu até morrer. Escreveu uma obra imensa na qual desvendou os segredos da amamentação, da comida e do homem tropical. Foi o precursor do debate sobre a importância dos trópicos para a discussão da energia.

Sua maior batalha foi levar ao conhecimento das gentes que a comida produzida pela indústria capitalista não era nutritiva. Também apontava que a tendência da comida rápida levaria a uma degeneração nutricional e humana. “Se o mundo teimar em comer às pressas, tristemente, cada vez mais se agravará essa civilização de muleta, de olho de vidro, de dentadura postiça”.  Defendia que o brasileiro tinha de comer fubá, farinha de mandioca, rapadura, coentro, cana de açúcar, feijão, arroz assim como receitava o uso da cadeira de balanço e da rede.

A medicina que praticou ao longo da vida era baseada na realidade brasileira, no clima, na cultura, na produção autóctone. Foi tão longe nas suas pesquisas sobre a comida e a cultura que chegou a desenhar um tipo novo de vaso sanitário que, segundo ele, era mais adequado para o nosso jeito de ser e de comer. Para ele, a comida enlatada tirava do povo o paladar e provocava doenças, além de enfraquecer os dentes. Sem mastigação, acostumando-se á comidas moles, o ser humano acabaria por não precisar mais dos dentes, servindo-se dele apenas como estética, bem ao gosto da produção capitalista. Afirmava categórico que a alimentação moderna provoca numerosas enfermidades sobretudo no aparelho circulatório e nos sistema nervoso, promovendo o uso abundante de calmantes, sedativos  e dormitivos. Alertou para o crescente número de doenças do aparelho digestivo.

Filho do interior mineiro enaltecia a comida do sertanejo, que era o que fazia dele um forte. Condenou o trigo descorticado, o arroz branco, o açúcar e a farinha refinados. Segundo ele, os maiores vilões da saúde. Também criticava o consumo da água mineral, a qual não continha minerais, era gaseificada artificialmente e ainda ficava morta no plástico.

Silva Mello não aceitava a interferência das farmacêuticas na discussão médica  e já mostrava os problemas que poderiam vir quando uma mesma empresa produzisse comida e remédio, coisa que hoje é bastante comum, produzindo o que Gilberto Vasconcellos chama de gastrofarmacocolonialismo, que deixa as pessoas dependentes da ebriedade do capitalismo neuroanfetamínico.

Os temas de pesquisa de Silva Mello que se concretizaram em dezenas de livros são trazidos por Gilberto aos borbotões,  e vão nos afogando em dúvidas e incertezas. Como manter a saúde num mundo de comidas artificializadas? Como sobreviver aos agrotóxicos e aos transgênicos (tema que Silva Mello não viu florescer)? Como enfrentar a correria do mundo moderno e mastigar com lentidão? Como fortalecer os dentes se a comida é mcdonalizada? Como não ter um câncer no intestino se só comemos venenos?

Terminamos o livro nesse assombro, mas entendendo claramente como o sistema capitalista de produção cria toda uma forma de vida artificial que é voltada para a produção da doença. Não é sem razão que as farmacêuticas exerçam tanto poder, bem como não é sem razão que a vida esteja completamente medicalizada e a medicina cada vez mais refém da produção de remédios e da indústria do exame.

Também fica muito claro o porquê do esquecimento da obra e do pensamento de Silva Mello nas faculdades e no campo da Medicina. Ele era um atrapalho para essa lógica mercantilizada. Ele era um crítico feroz da indústria da doença e um anunciador da saúde, coisa que soa inconcebível no mundo de hoje.

A notícia boa é que Gilberto Felisberto Vasconcellos recupera essas ideias, desvela essa obra, e com sua escrita criativa e ousada, recoloca o tema da saúde no seu devido lugar.

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