quinta-feira, 9 de maio de 2019

A Democracia da Cagada



Há várias maneiras de avaliar a democracia ou a falta de democracia em determinado país, mas seguramente um dos mais importantes critérios, embora isso choque a pudicícia dos moralistas, é o modo e o lugar em que as pessoas defecam no dia a dia, no trabalho, no escritório, na fábrica, na escola, no bar, na rua, no mato, no restaurante, na cadeia, na rodoviária, no hospital, no ônibus e no bueiro.

Sabemos todos que a defecação é um ato fisiológico humano universal: do nascimento até a morte. Seja qual for o país, a cultura, o regime político, a classe social.

Defecar é uma das exigências biológicas do ser vivo: chinelão ao mais graúdo ou bacana milionário.

Viver é defecar. Por isso não seria descabido falar em uma antropologia da defecação, porém do que se trata aqui não é empreender uma reflexão sobre a universalidade da defecação ou sua história, e sim compreender o modo particular como esse ato fisiológico se realiza na sociedade brasileira.

Eis a pergunta: existe um modo específico de o homem brasileiro defecar? Quais são as suas condições sociais e higiênicas? Como é a engenharia do vaso sanitário? De que maneira se faz a limpeza do ânus? Quais são os temores e as angústias de não conseguir encontrar um lugar apropriado para uma boa defecação? É possível falar em uma política pública de defecação? Como é que as prefeituras e os municípios encaram essa questão?

Pontos de vista

Pode-se ou não, quanto a isso, estabelecer a clássica clivagem entre esquerda e direita? O que é o ponto de vista reacionário ou progressista diante do homem defecando?

É possível afirmar que existe uma memória coletiva de defecação? Ou esse ato fisiológico está restrito apenas à experiência individual íntima e intransferível? Em muitos aspectos da nossa vida, o começo é o fim, mas, em se tratando desse assunto, o produto final - o excremento - revela a situação existencial do indivíduo, ou até mesmo a modalidade de seu caráter.

O exame de fezes é uma exigência clínica para o médico conhecer a quantas anda a saúde do paciente no interior de seu corpo e o reflexo disso em sua alma.

Esta pergunta faz sentido: de que modo e quantas vezes você defeca? - aí diremos quem você é. Na cultura da sociedade contemporânea foi a psicanálise que vulgarizou a conexão entre o caráter da pessoa e o aparelho digestivo, ao afirmar que comumente o indivíduo sovina, econômico, pão-duro padece de prisão de ventre, enquanto o esbanjador de dinheiro, o tipo perdulário, seria aquela pessoa com o intestino solto e diarréico, como se houvesse estreita correspondência entre o excremento e o interesse que se tem pelo dinheiro desde a mais tenra idade, quando a criança começa a lidar ou a brincar com suas próprias fezes.

O estômago é macho

A conhecida fase anal da personalidade humana é indissociável da função excretora, por onde são eliminadas do organismo as substâncias pelas vias naturais.

A alimentação constitui um dos maiores prazeres da vida. O estômago governa a vida, diz o provérbio. Luís da Câmara Cascudo, quem melhor estudou a história da alimentação no Brasil, lembrava que o estômago é macho, o sexo é fêmea, porque o estômago exige ser satisfeito de maneira implacável, enquanto o sexo pede ser desviado, substituído, sublimado.

É triste presenciar pessoas que sofrem de hipocondria do estômago, sempre desconfiadas ante o prato de comida, com medo de se envenenar ou de passar mal, sendo portanto incapazes de conhecer o prazer da digestão até a etapa final: a feliz defecação.

Júlio Camba, famoso nutricionista espanhol, falando sobre a fisiologia do gosto, defendia a tese de que um bom prato de comida deve nos proporcionar satisfação psicológica. Do que se trata aqui é a democracia da cagada, e não a cagada da democracia.


Texto publicado na Revista Caros Amigos
Ano XI, número 131, fevereiro de 2008
Página 37: “Gilberto Felisberto Vasconcellos disseca a cagada como fenômeno cultural”
Compilação: Matheus Rosa

Um comentário:

  1. Vai republicar outros textos da Caros Amigos aqui? Gostaria muito de reler um sobre Glauber Rocha, onde você fazia uma comparação das vantagens do cinema a televisão. Foi um dos primeiros textos seus que li e nunca mais consegui encontrar. Acho que é de 2001. Obrigado.

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